A Humanização no Laboratório Clínico

Humanization in Clinical Laboratory

 

Parece claro que humanizar é tornar-se humano. Neste sentido, dois conceitos podem ser apresentados. Um deles pode estar relacionado diretamente à evolução filogenética, biológica e antropológica do Homo sapiens ou das espécies de humanos ancestrais (Australopithecus sp. Homo abilis, Homo erectus, Homo neanderthalensis). Humanizar, todavia, pode ter ainda uma outra perspectiva. Humanizar pode estar associado a uma visão humanista, humanística, humanitária e/ou humanitarista das relações interpessoais, encerrando a ideia de um interesse pelo outro ser humano e sua essência, sempre levando em conta a ética, a dignidade e o bem-estar dos indivíduos.(1)

Num sentido mais sociológico, a humanização está ligada à formulação de códigos de conduta e acordos de cooperação cuja base são os valores humanos coletivamente aceitos. Na esfera filosófica, a humanização encontra fundamento no humanismo, corrente que propõe a valorização do ser humano no âmbito de suas potencialidades e faculdades, ressaltando a capacidade de criação e transformação da realidade associada à generosidade, compaixão e preocupação com a condição humana.(1,2)

Em sua origem, a mesma da filosofia, a medicina se assentava em princípios filosóficos, que via o homem de forma holística, sendo composto de corpo e espírito (emoções). Nesse sentido, a doença não era considerada de maneira isolada ou estanque, mas sim como algo ligado ao estado humano, à natureza circundante e às leis universais regentes. As causas das doenças deveriam ser pesquisadas não somente no órgão enfermo (corpo), mas também na essência do homem (espírito). Desse modo, o médico, além de ser um fisiologista e naturalista, tinha que ser também um humanista.(3,4)

Com o passar do tempo, o modelo humanista foi sofrendo mudanças, rupturas e transformações e, mais recentemente, em decorrência do prodigioso avanço tecnológico do século XX, o conceito de medicina humanista, que a considerava não somente uma ciência, mas também uma arte, foi perdendo espaço para uma medicina dogmática, exata e biológica, apoiada totalmente na tecnociência e afastada das humanidades.(4)

Um dos impactos dessa tendência, no entanto, foi a desumanização do profissional de saúde, que se tornou um técnico-especialista com elevado conhecimento dos mecanismos fisiopatológicos e farmacológicos, mas completamente indiferente aos aspectos humanos presentes nos pacientes, cuja condição, invariavelmente, é de fragilidade física e emocional.(2,4)

O principal aspecto que envolve a humanização fundamenta-se exatamente no fortalecimento do comportamento ético em articular o cuidado técnico-científico ao cuidado que incorpora o acolhimento e o respeito ao outro como um ser que tem autonomia e dignidade.(5)

Humanizar, em análises clínicas, que, à semelhança do programa Humaniza SUS(6) poderia ser chamado de HumanizaLab, é também tratar o paciente com atenção e respeito, sem que se perca, por isso, as características próprias da relação profissional dessa especialidade. A obrigação do analista clínico é atuar no melhor interesse do paciente tal e como entende a medicina laboratorial, respeitando sempre sua livre determinação. Os profissionais de análises clínicas devem esforçar-se para adquirir uma sólida formação humanística e cultural que permita conservar a visão do homem no seu conjunto, integrado no meio familiar e social.(3)

O produto final do trabalho do analista clínico é o laudo. Um laudo de qualidade vai além de uma boa técnica e um bom controle. Embutido nele deve estar o conceito de assistência humanizada, que se estende desde o pedido para a realização do exame laboratorial até a interpretação dos resultados pelo médico solicitante. Durante todo o período que envolve o exame laboratorial, três momentos são tecnicamente críticos e eticamente vulneráveis e, por isso, a humanização do atendimento deve estar sempre presente: Fase pré-analítica, fase analítica e fase pós-analítica.(7,8)

Normalmente, a fase pré-analítica, inclui, a partir do pedido do exame pelo clínico, a preparação do paciente para a coleta do material biológico, a coleta propriamente dita do material biológico e o preparo da amostra para a análise laboratorial. Na fase analítica, ocorre a execução das análises e procedimentos pelos diversos setores especializados do laboratório clínico. Por fim, é na fase pós-analítica que ocorre a confecção de um laudo baseado nos dados e resultados obtidos pela investigação analítica. Na atualidade, os termos pré(pré)analítica e pós(pós)analítica têm sido também propostos para caracterizar as fases da realização de um exame laboratorial cujo laboratório têm pouco ou nenhum controle. A etapa pré(pré)analítica inclui a escolha pelo médico assistente dos exames mais adequados para a confirmação da suspeita clínica e à sua solicitação ao laboratório. A etapa pós(pós)analítica corresponde à interpretação dos resultados contidos no lauda pelo médico que assiste ao paciente.(9)

Humanizar constitui uma exigência ética que provem do respeito pela dignidade humana. Qualquer processo de humanização passará pelas relações interpessoais e por um agir com boa intenção. Desse modo, em todas as fases do exame laboratorial, a humanização na assistência pode produzir mudanças estruturais na relação analista clínico-paciente, em nível técnico e afetivo-emocional, levando à conscientização da necessidade de condutas e atitudes corretas e coerentes.(10) No campo da fase pré-analítica, pode prevenir, por exemplo, tratamentos com descortesia, negligências com o cadastro e com informações relevantes oferecidas pelo paciente, orientações equivocadas ou não orientações acerca dos procedimentos inerentes aos exames laboratoriais, emprego de material não descartável, imperícias e imprudências nos procedimentos de coleta e lesões pós-punção venosa. Na fase analítica, previne também a utilização de kits reagentes com validade vencida e/ou sem certificado de qualidade, o uso de equipamentos sem as checagens com calibradores e controles internos e inferências de resultados para amostras que não foram submetidas às análises devidas. Na fase pós-analítica, previne erros na confecção e liberação de laudos e a quebra de privacidade e/ou confidencialidade pelo uso ou revelação de informações particulares ou confidenciais do paciente sem a sua expressa autorização e/ou consentimento.(11-3)

No centro de um laboratório clínico humanizado, está o paciente. A humanização no laboratório permitirá que este ofereça respostas [laudos] não apenas científicas ou técnicas, mas também humanas, contendo acolhimento, proteção, respeito, atenção, compreensão, empatia, compaixão, dedicação, competência, entre tantas outras formas de agir de modo ético e humanizado.(10)

 

Referências

  1. Rios IC. Humanização: A Essência da Ação Técnica e Ética na práticas de Saúde. Revista Brasileira de Educação Médica. 2009;33(2):253-61.
  2. Arias MDE & García AC. Bioética en las Ciencias de la Salud. Asociación Alcalá: Granada, 2001. 575pp.
  3. Boladeros M. Bioética del Cuidado. Qué Significa Humanizar la Asistencia? Editorial Tecnos: Madrid, 2015. 293pp.
  4. Gallian DMC. A (Re)humanização da Medicina. Psiquiatria na Prática Médica. 2001;33(2):1-6. Disponível em: http://www2.unifesp.br/dpsiq/polbr/ppm/especial02a.htm. Acesso em 20 jun 2016.
  5. Bueno FMG & Bueno E. A Ética e a Humanização no Cuidado à Saúde. 2003. Disponível em: http://ltc.nutes.ufrj.br/constructore/objetos/%E9tica%20e%20humaniza%E7%E3o.pdf. Acesso em 20 jun 2016.
  6. Santos Filho SB, Barros MEB, Gomes RF. A Política Nacional de Humanização como Política que se Faz no Processo de Trabalho em Saúde. Interface. 2009;13 (Supl. 1): 603-13.
  7. Auler JA & Berti SM A Ética das Virtudes e a Prática Médica nos Laboratórios de Reprodução Assistida. Phronesis. 2010;6: 80-99.
  8. Vieira KF. Impacto da Implantação de um Programa de Acreditação Laboratorial Avaliado por Meio de Indicadores de Processo num Laboratório Clínico de Médio Porte. 20102. Dissertação (mestrado). Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Programa de Fisiopatologia Experimental. São Paulo, 2012.
  9. Vieira KF, Shitara ES, Mendes ME, Sumita NM. A Utilidade dos Indicadores da qualidade no Gerenciamento de Laboratórios Clínicos. Jornal Brasileiro de Patologia e Medicina Laboratorial. 2011; 47(3): 201-10.
  10. Menezes RDB & Brito JHS. Humanização da Saúde: Da Intenção à Inteligência Emotiva pelas Ideias. Ideias y Valores. 2012;61(148):23-35.
  11. Avilés JAC. La Ética en el Laboratorio. Correo Científico Médico. 2013;17(1): 84-6.
  12. Cruz CF. Os Pontos Críticos das Fases Pré-Analítica e Pós-Analítica. 2012 Disponível em: http://www.lacen.saude.pr.gov.br/arquivos/File/SESLAB/Pontos_Criticos.pdf. Acesso em: 20 jun 2016.
  13. OMS. Código de Ética de los Laboratorios. 2007. Disponível em: http://www.paho.org/spanish/ad/ths/ev/labs-guia_imp_codetica.pdf. Acesso em 20 jun 2016.

 

 

Paulo Murillo Neufeld, PhD 

Editor-Chefe da Revista Brasileira de Análises Clínicas (RBAC)