Avaliação do perfil lipídico em gestantes acompanhadas na rede pública de saúde em um município do estado de Minas Gerais

Lipid profile assessment in pregnant women followed in the public health network in a municipality of in Minas Gerais State

 

Laudicéia Ferreira Fróis1, Adriany Aparecida Roquini Lima1, Lucas Giarolla Gonçalves de Mattos2, Maysa Helena de Aguiar Toloni1, Lilian Gonçalves Teixeira1

1  Universidade Federal de Lavras, Departamento de Nutrição. Lavras, MG, Brasil.

2  Universidade Federal de Lavras, Departamento de Ciências da Saúde. Lavras, MG, Brasil

 

Recebido em 05/04/2022

Aprovado em 19/05/2022

DOI: 10.21877/2448-3877.202200036

INTRODUÇÃO

 

Durante a gestação, ocorrem alterações no perfil lipídico para assegurar o suprimento contínuo de nutrientes ao feto em crescimento,(1) cujo remodelamento é proveniente de alterações genéticas, energéticas e hormonais.(2)

Toda gestante tem direito a um pré-natal de qualidade e que promova melhores condições de vida e nutrição para a mãe e para o bebê.(3) No Brasil, as gestantes que são acompanhadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) têm direito a uma assistência pré-natal que representa um conjunto de cuidados e procedimentos que almejam preservar a saúde da gestante e do concepto, assegurando a profilaxia e a detecção precoce das complicações próprias da gestação e o tratamento adequado de doenças maternas preexistentes.(3,4)

A atenção nutricional é parte importante deste protocolo da assistência pré-natal, essencialmente em razão do período de intenso crescimento e desenvolvimento da mãe e do feto, com elevadas necessidades nutricionais decorrentes de ajustes fisiológicos.(5) A atenção à alimentação no pré-natal pode ser considerada uma das mais importantes metas em termos de saúde pública devido à possibilidade de redução dos determinantes da morbimortalidade neona­tal.(5,6)

As doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), principalmente cânceres, doenças cardiovasculares, diabetes e doenças respiratórias crônicas, ocupam destaque nas estatísticas de saúde, sendo responsáveis pelas maiores taxas de morbimortalidade no Brasil.7 Essas doenças também apresentam alta prevalência entre as mulheres em todo o mundo e o impacto das DCNT nas gestantes apresenta duplo efeito, uma vez que pode ocasionar morte prematura do binômio e incapacidade entre as mulheres, independente do estrato socioeconômico.(8)

As dislipidemias podem ser categorizadas em hiperlipidemias (níveis elevados de lipídios sanguíneos) e hipolipidemias (níveis plasmáticos reduzidos de lipoproteínas).(9,10) As modificações podem incluir elevação dos níveis plasmáticos de colesterol total (CT), triglicerídeos (TG) e lipoproteína de baixa densidade (LDL-c), associada ou não com diminuição dos níveis de lipoproteína de alta densidade (HDL-c).(11) Assim como as DCNT, os distúrbios dislipidêmicos são multifatoriais e, entre eles, destacam-se os distúrbios genéticos, medicamento, condições mórbidas e estilo de vida inadequado, dentre os quais a alimentação.(12)

Nesse contexto, é imprescindível o rastreio de distúrbios metabólicos no período gestacional. Sabe-se que a gestação provoca aumento fisiológico dos lipídios sanguíneos em razão das alterações hormonais durante os trimestres de gestação,(13) e o diagnóstico quando realizado pela referência da Sociedade Brasileira de Cardiologia pode ser errôneo, haja vista que essa atende a população geral.

Padrões dietéticos variados são capazes de modular diferentes aspectos do processo aterosclerótico, riscos cardiovasculares e níveis lipídicos. O consumo de gorduras saturadas e trans, encontradas principalmente em produtos ultraprocessados, está diretamente associado à elevação de LDL-c plasmático e aumento do risco cardiovascular.(14) Ademais, deve-se ressaltar que o consumo de carboidratos refinados tem importante função na gênese da doença cardiovascular, possibilitando o estabelecimento da hipercolesterolemia. Assim, já não existem dúvidas de que o consumo excessivo de ultraprocessados configura-se risco patológico potencial para o binômio materno-fetal.(15)

Embora o período gestacional apresente potencial para distúrbios dislipidêmicos, a avaliação do perfil lipídico não faz parte dos exames de rotina obstétricos no Sistema Único de Saúde (SUS), dificultando assim o seu rastreamento.(16) Desse modo, o objetivo do presente estudo foi avaliar a associação de fatores sociodemográficos e nutricionais ao perfil lipídico para gestantes.

 

MÉTODOS

 

Estudo transversal com abordagem quantitativa. Participaram da pesquisa 67 gestantes atendidas nas Estratégias de Saúde da Família (ESF), no Ambulatório Médico de Especialidades (AME) e no Centro Estadual de Atenção Especializada (CEAE) no município de Lavras – Minas Gerais, que concordaram com o proposto no Termo de Consentimento Livre e Esclarecidas (TCLE) durante o período de abril a dezembro de 2018.

Para seleção da amostra, foram agrupadas aquelas cadastradas nas unidades de saúde, sendo a partir de então realizada uma busca ativa a essas gestantes. A seleção da amostra foi por conveniência. As características demográficas foram coletadas no dia do atendimento das consultas de pré-natal. Finalizada essa etapa, realizou-se a coleta de dados antropométricos (peso e altura) e o agendamento para a coleta de sangue no laboratório. A idade gestacional (IG) em semanas, no momento da coleta de sangue, foi calculada a partir da data da última menstruação (DUM) presente na caderneta da gestante.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (COEP) da Universidade Federal de Lavras (UFLA) (CAAE nº 74972517.0.0000.5148; Parecer no 2.984.379).

Dados sociodemográficos e obstétricos foram coletados: idade, trimestre gestacional, cor da pele referida, estado civil, renda familiar mensal; nível de escolaridade; recebimento de benefício do governo.

As aferições antropométricas foram obtidas seguindo os Protocolos do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN). Após a coleta desses dados, era realizado o cálculo do Índice de Massa Corporal (IMC) gestacional da colaboradora, sendo seu diagnóstico antropométrico estabelecido de acordo com a referência proposta por Atalah (1999) adotada pelo Ministério da Saúde e o Protocolo do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional 2011.(17)

A insegurança alimentar foi avaliada pela Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), instrumento validado e adaptado para a população brasileira. A utilização da EBIA permite considerar o contexto social do país e realiza o diagnóstico direto de segurança alimentar ou insegurança alimentar em residências familiares. A estrutura da escala utilizada inclui 14 questões, que compreendem agrupamentos conceituais que permitem estimar a prevalência da segurança alimentar e classificar as residências em quatro níveis: segurança alimentar e insegurança alimentar leve, moderada e grave.(18)

As amostras de sangue foram coletadas após jejum de 12 horas e analisadas no laboratório de análises clínicas credenciado à prefeitura do município. As concentrações plasmáticas do colesterol total, triglicerídeos, HDLc e LDLc foram mensuradas pelo método enzimático-colorimétrico Trinder, através da análise do soro sanguíneo.

A prevalência de dislipidemia foi obtida considerando-se a média dos resultados apresentados pelas participantes, conforme apresentados na Tabela 1. Para essa finalidade, foram utilizados dois critérios: critério dos percentis proposto pelo “Jornal de Ginecologia e Obstetrícia” e pelo estudo de Piechota e Staszewski (ver Tabela 2, adiante), sendo consideradas alteradas as concentrações de CT, LDL-c e TG superiores ao percentil 95 e de HDL-c inferiores ao percentil 5 de acordo com o trimestre gestacional.(2,15) Além desses, utilizou-se também a referência proposta na “Atualização da V Diretriz Brasileira de Dislipidemia”, considerando para critério diagnóstico de dislipidemia CT≥190mg/dL, TG≥150mg/dL, HDL<40mg/dL e LDL-c≥160mg/dL.(10)

O banco de dados foi construído no software Epi-Info 3.5.4 (Center for Disease Controland Prevention, Atlanta, EUA). Esses foram codificados, duplamente digitados, validados e analisados através do software SPSS versão 20. Foram investigadas associações entre dados laboratoriais de colesterol total, HDL, LDL e triglicerídeos, abaixo e acima da média das aferições com as variáveis: Programa Bolsa Família (PBF), antropometria, estado civil, escolaridade, renda familiar, [In]segurança alimentar e idade, utilizando o teste de Poisson, para cálculo de razão de prevalência (RP), considerando valor significativo de p<0,05. As variáveis foram reportadas em valores absolutos e em percentuais, conforme apresentado na Tabela 3.

 

 

 

Tabela 1

Características sociodemográficas, obstétricas e nutricionais de gestantes da rede pública de saúde Lavras-MG, 2018

  Amostra (67)
Variáveis % (n)
Programa Bolsa Família  
Beneficiária 22,4 (15)
Não Beneficiária 77,6 (52)
Idade  
< 20 anos 17,9 (12)
> 20 anos 82,1 (55)
Cor da pele  
Branca 31,3 (21)
Preta 25,4 (17)
Amarela 1,5 (1)
Pardo 41,8 (28)
Estado civil  
Solteira 62,7 (42)
União estável 9,0 (6)
Casada 28,4 (19)
Escolaridade  
< 9 anos 17,9 (12)
> 9 anos 82,1 (55)
Renda Familiar  
Não sabe 7,5 (5)
< 2 SM 58,2 (39)
> 2 SM 34,3 (23)
Trimestre gestacional  
Primeiro 16,4 (11)
Segundo 58,2 (39)
Terceiro 25,4 (17)
[In]segurança alimentar  
Segurança alimentar 64,2 (43)
Insegurança alimentar leve 16,4 (11)
Insegurança alimentar moderada 9,0 (6)
Insegurança alimentar grave 10,4 (7)
IMC gestacional  
Baixo peso 19,4 (13)
Eutrofia 29,9 (20)
Sobrepeso 25,4 (17)
Obesidade 25,4 (17)

IMC: Índice de Massa Corporal.

Tabela 2

Análise de resultados de exames bioquímicos de gestantes assistidas na rede pública de saúde no município de Lavras – MG, 2018

  Média + Desvio padrão (mg/dL) Piechota e Staszekski Jornal de Ginecologia e Obstetrícia Atualização V Diretriz Brasileira de Dislipidemia
    Adequado

% (n)

Inadequado

% (n)

Adequado

% (n)

Inadequado

% (n)

Adequado

% (n)

Inadequado

% (n)

Triglicerídeos 145,73 ± 55,76 95,5 (64) 4,5 (3) 95,5  (64) 4,5 (3) 56,7 (38) 43,3 (29)
Colesterol Total 213,67 ± 44,63 100 (67) 0 (0) 100  (67) 0 (0) 31,3  (21) 68,7 (46)
LDL 121,08 ± 35,78 100 (67) 0 (0) 100  (67) 0 (0) 85,1  (57) 14,9 (10)
HDL 61,72 ± 14,66 94 (63) 6 (4) 94  (63) 6  (4) 97  (65) 3 (2)

HDL: lipoproteína de alta densidade; LDL: lipoproteína de baixa densidade.

Tabela 3

Associação entre valores médios do perfil lipídico (triglicerídeos, colesterol total, HDL colesterol, LDL colesterol) em gestantes assistidas na rede pública de saúde a características sociodemográficas e nutricionais no município de Lavras – MG, 2018. N=66a

  Triglicerídeos Colesterol total HDL colesterol LDL colesterol
  Todas as gestantes (66)

% (n)

Abaixo da média

% (n)

Acima da média

% (n)

RP

(IC95%);

 

Abaixo da média

% (n)

Acima da média

% (n)

RP

(IC95%);

 

Abaixo da média

% (n)

Acima da média

% (n)

RP

(IC95%);

 

Abaixo da média

% (n)

Acima da média

% (n)

RP

(IC95%);

 

Programa Bolsa Família                          
Não Beneficiária 77,3 (51) 37,9 (25) 39,4

(26)

1,400 (1,173-1,671) * 34,8 (23) 42,4 (28) 0,933 (0,644-1,353) 37,9 (25) 39,4

(26)

0,838 (0,623-1,128) 36,4 (24) 40,9 (27) 0,844 (0,582-1,224)
Beneficiária 22,7 (15) 15,2 (10) 7,6

(5)

1 16,7 (11) 6,1

(4)

1 13,6 (9) 9,1

(6)

1 15,2 (10) 7,6

(5)

1
Cor da pele                          
Preta/Parda 74, 2 (49) 37,9 (25) 36,4

(24)

0,750 (0,522-1,077) 34,8

(23)

39,4

(26)

1,078 (0,698-1,665) 37,9

(25)

36,4

(24)

1,172 (0,763-1,800) 36,4 (24) 37,9 (25) 0,984 (0,637-1,522)
Branca 25,8(17) 15,2 (10) 10,6

(7)

1 16,7

(11)

9,1

(6)

1 13,6

(9)

12,1

(8)

1 15,2 (10) 10,6

(7)

1
Estado civil                          
Sem companheiro 62,1 (41) 33,3 (22) 28,8

(19)

0,873 (0,640-1,191) 33,3

(22)

28,8

(19)

0,764 (0,570-1,023) 36,4 (24) 25,8

(17)

0,679 (0,523-0,882)* 33,3 (22) 28,8 (19) 1,026

(0,746-1,410)

Com companheiro 37,9 (25) 19,7 (13) 18,2

(12)

1 18,2

(12)

19,7

(13)

1 15,2 (10) 22,7

(15)

1 18,2 (12) 19,7 (13) 1
Escolaridade                          
< 8 anos 9,1 (6) 6,1

(4)

3,0

(2)

0,727 (0,612-0,864)* 6,1

(4)

3,0

(2)

0,928 (0,601-1,432) 3,0

(2)

6,1

(4)

1,391 (1,175-1,648)* 6,1

(4)

3,0

(2)

1,016 (0,657-1,571)
> 8 anos 90,9 (60) 47,0 (31) 43,9

(29)

1 45,5

(30)

45,5

(30)

1 48,5 (32) 42,4

(28)

1 45,5 (30) 45,5 (30) 1
Renda                          
≤ 2 SM 57,6 (38) 28,8 (19) 28,8

(19)

0,964 (0,694-1,339) 33,3

(22)

24,2

(16)

0,857 (0,622-1,182) 28,8 (19) 28,8

(19)

1,048 (0,776-1,414) 36,4 (24) 21,2 (14) 0,964 (0,694-1,339)
>2 SM 42,4 (28) 24,2 (16) 18,2

(12)

1  18,2

(12)

24,2

(16)

1 22,7 (15) 19,7

(13)

1 15,2 (10) 27,3 (18) 1
Idade                          
≤ 20 anos 21,2 (14) 10,6

(7)

10,6

(7)

1,565 (1,331-1,840) * 9,1

(6)

12,1

(8)

0,692 (0,591-0,812)* 9,1

(6)

12,1

(8)

1,333 (1,143-1,555) * 7,6

( 5)

13,6

(9)

0,750 (0,637-0,883)*
[In]segurança alimentar                          
Insegurança alimentar 36,4 (24)

 

16,7 (11) 19,7

(13)

0,884 (0,626-1,249) 22,7 (15) 13,6

(9)

0,980 (0,686-1,400) 22,7 (15) 13,6

(9)

0,888 (0,584-1,351) 22,7 (15) 13,6

(9)

0,884 (0,626-1,249)
Segurança alimentar

 

63,6 (42) 36,4 (24) 27,3

(18)

1 28,8 (19) 34,8

(23)

1 28,8 (19) 34,8

(23)

1 28,8 (19) 34,8 (23) 1

 

Déficit de peso ¶                          
Presente 41,9 (13) 22,6 (7) 19,4

(6)

1,565 (1,331-1,840) * 22,6

(7)

19,4

(6)

1,440 (1,224-1,693) * 25,8

(8)

16,1

(5)

1,333 (1,143-1,555) * 25,8

(8)

16,1

(5)

0,750 (0,637-0,883)*
Ausente 58,1 (18) 41,9 (13) 16,1

(5)

1 35,5

(11)

22,6

(7)

1 29,0

(9)

29,0

(9)

1 38,7 (12) 19,4

(6)

1
Excesso de peso §                          
Presente 66,7 (36) 27,8 (15) 38,9

(21)

1,565 (1,331-1,840) * 31,5 (17) 35,2

(19)

0,692 (0,591-0,812)* 31,5 (17) 35,2

(19)

1,333 (1,143-1,555) * 27,8 (15) 38,9 (21) 0,750 (0,637-0,883)*
Ausente 33,3 (18) 24,1 (13) 9,3

(5)

1 18,5

(10)

14,8

(8)

1 16,7

(9)

16,7

(9)

1 22,2 (12) 11,1

(6)

1

IMC: Índice de Massa Corporal; HDL: Lipoproteína de alta densidade; LDL: Lipoproteína de baixa densidade; TGL: Triglicerídeos; RP: Razão de Prevalência; IC: Intervalo de Confiança; *: p<0,001 comparando acima e abaixo da média do mesmo lipídio. Teste de Poisson; ¶: Comparação entre gestantes classificadas como baixo peso (n=13) e eutróficas (n=18); §: Comparação entre gestantes classificadas como sobrepeso (n=36) e obesas (n=18); a : 66 gestantes, pois ao dicotomizar as variáveis uma participante foi excluída devido à incompatibilidade autodeclaratória étnica, com o desfecho investigado

 

 

 

RESULTADOS

 

Foram avaliadas 67 gestantes, com idade entre 16 e 40 anos (25,16 ± 6,08), e idade gestacional média de 21,73 ± 8,38 semanas com 58,2% (n=39) no segundo trimestre gestacional.

Das gestantes avaliadas, 37,4 % (n=25) eram casadas ou viviam em união consensual e 17,9% (n=12) apresentavam até 9 anos de estudos (ver Tabela 1).

Com relação à situação de segurança alimentar, 35,8% (n=24) apresentaram algum grau de insegurança alimentar, sendo que 9,0% (n=6) apresentavam-se em situação moderada de insegurança alimentar e 10,4% (n=7) grave. Na análise dos parâmetros antropométricos, 50,8% (n=34) apresentaram IMC gestacional em excesso de peso (sobrepeso e obesidade) e 19,14 (n=13) apresentaram baixo peso (ver Tabela 1).

Na investigação de dislipidemia, considerando-se a média dos resultados apresentados pela população investigada, 100% (n= 67) apresentaram valor adequado para os parâmetros colesterol total e LDL, 95,5% (n=64) para triglicerídeos e 94,0% (n= 63) para HDL de acordo com os critérios de percentil, adotados pelo Jornal de Ginecologia e Obstetrícia e por Piechota e Staszewski. Em contrapartida, seguindo as referências propostas na “Atualização da V Diretriz Brasileira de Dislipidemia”, valores inadequados foram mais perceptíveis, sendo as frações de CT e TGL as mais evidentes, correspondendo a primeira a 68,7% (n=46) e a segunda a 43,3% (n=29), conforme representado na Tabela 2.

No que tange à associação do perfil lipídico com fatores sociodemográficos e nutricionais, foi possível identificar significância para a fração de triglicerídeos, quando associada às condições: não ser beneficiária do PBF, presença de déficit e excesso de peso e ter idade inferior a 20 anos. Também, significância foi observada na associação do colesterol total às variáveis déficit de peso e cor da pele parda/preta. A fração LDL reportou significâncias quando associada ao estado civil sem companheiro e escolaridade menor que 9 anos de estudo (Tabela 3).

 

DISCUSSÃO

 

O presente trabalho revelou que o percentual de dislipidemias pelo critério da Atualização da V Diretriz Brasileira de Dislipidemia foi maior que o identificado pelo critério dos percentis. A motivação para comparar dois critérios diagnósticos para a definição de dislipidemia na gestação foi a falta de consenso sobre qual a melhor forma de diagnosticar a dislipidemia na gestação.

Em referência às associações, foi possível verificar que gestantes não beneficiárias do PBF com déficit ou excesso de peso e idade inferior a 20 anos apresentaram significância para a fração de triglicerídeos. Já é evidente que o ganho de peso inadequado no período gestacional pode acarretar resultados adversos à saúde do bebê.(19) A hipertrigliceridemia em gestantes obesas é fonte de energia para o feto.(20) Embora os triglicerídeos não atravessem a placenta, eles representam um depósito flutuante de combustível que, consecutivamente, pode afetar o feto caso haja um comprometimento da homeostase lipídica.(21)

Ademais, o achado considerável de a participante não ser beneficiária do PBF agrupado à elevação de triglicerídeos é compatível com achados já reportados na literatura, os quais determinam que a renda limitada inviabiliza o acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficientes.(22) Desse modo, a alimentação é caracterizada pela elevada presença de cereais refinados, óleos e gorduras, açúcares e produtos ultraprocessados, que possuem alta densidade energética e baixo aporte nutricional, em paralelo ao consumo insuficiente e monótono de hortaliças e frutas, fatores esses que configuram em potencial de risco patológico materno-fetal,(14) principalmente no aparecimento das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT).(23)

Além disso, observou-se relação quando associado o colesterol total às variáveis déficit e excesso de peso, bem como ter idade inferior a 20 anos. O ganho de peso inadequado durante a gestação é reportado na literatura como fator de risco, haja vista que corrobora com restrição de crescimento intrauterino, predisposição à anemia e infecções, alterações no desenvolvimento motor, alterações visuais, bem como déficit no desenvolvimento da criança ao longo da vida.(24) Sabendo disso, marcadores bioquímicos como colesterol (total, HDL e LDL) e triglicerídeos (TG) são utilizados isoladamente ou em associação, como por exemplo nas correlações TG/HDL-c e LDL-c/HDL-c, apontam a incidência de importantes morbidades, como doença cardiovascular.(25)

Em relação à fração HDL observou-se associação com os desfechos excesso e déficit de peso, baixa escolaridade, idade abaixo de 20 anos e ausência de cônjuge. Em trabalhos precedentes incluindo gestantes com sobrepeso e obesas, são notórias as hipóteses e sugestões pertinentes a um aumento consecutivo nas alterações dislipidêmicas.(24) Na tentativa de identificar riscos cardiometabólicos comparando gestantes de peso normal com gestantes de sobrepeso, observaram um aumento nos níveis de TG, CT, VLDL, LDL, porém os níveis de HDLc se mantiveram inalterados nas gestantes de peso normal, em contrapartida com os níveis significativamente baixos nas gestante com baixo peso.(26)

Além disso, a escolaridade e idade materna são consideradas um marcador obstétrico de risco, tanto para a gestante quanto para a progênie, pois influencia quando e como a gestante acessa o serviço de saúde, e o quanto compreende as orientações de autocuidado e cuidado com o bebê ao longo das consultas de pré-natal.(27)

Em relação à fração LDL, mediante as análises, ter idade inferior a 20 anos, assim como déficit ou excesso de peso foram variáveis reportadas como fator de proteção, o que na literatura é apresentado de maneira divergente,(11,12,19,20) e podemos explicar tal fato, como uma possível causalidade reversa. Por ser um estudo transversal, a exposição muda como consequência da doença, ou seja, as variáveis citadas se comportam como uma variável de confusão, distorcendo a associação entre a exposição (idade inferior a 20 anos e déficit ou excesso de peso) e o desfecho (fator de proteção para o aumento dos níveis de LDL).

Nessa perspectiva, embora algumas associações de variáveis sociodemográficas com os achados bioquímicos no território investigado tenham retratado estatística positiva, grande proporção das variáveis se mostrou independente. Portanto, é evidente a necessidade de se construir um método de referência por trimestres gestacionais para a população brasileira, assim como a utilizada para habitantes de outra nacionalidade, como as nesse estudo equiparadas.

Este trabalho apresenta algumas limitações. Trata-se de um estudo transversal, em que todas as gestantes apresentaram apenas uma determinação do lipidograma e sabe-se que as frações lipídicas, especialmente a concentração de triglicerídeos, sofrem alterações significativas dependendo da alimentação, intensidade de exercícios e variações intraensaios e interensaios laboratoriais. Sob outra perspectiva, as associações foram realizadas equiparando se a média dos achados bioquímicos populacional e os estudos que reportam dislipidemia nesse modelo são escassos. A falta de reconhecimento e a avaliação apropriada da influência dos fatores confundidores possivelmente interferem nos resultados.

Sendo assim, os achados refletem a importância de compreender a distribuição e os fatores associados aos diferentes tipos de dislipidemias no período gestacional. O direcionamento de ações de prevenção e a promoção da educação em saúde são ações que devem ser promovidas de forma integrada e ampliada, visando não o gerenciamento das DCNT, mas o monitoramento do perfil de saúde da gestante. Pesquisas que relatam a elevada prevalência de fatores de risco modificáveis e tratáveis para as dislipidemias são importantes para reestruturação do modelo de atenção básica voltado para prevenção deste problema reversível, que afeta uma substancial parcela de gestantes

A prevalência de dislipidemia avaliada pelo critério da V Diretriz Brasileira de Dislipidemia para adultos foi maior do que a prevalência identificada pelo critério dos percentis específicos da gestação. No entanto, ao associar a média de achados bioquímicos a variáveis sociodemográficas, foi possível identificar associações em baixa proporção. Sendo assim, enquanto houver limitação em se estabelecer a relação causal desses fatores e o desenvolvimento de dislipidemia no período gestacional, este tipo de estudo se torna importante para estudos de prevalência de doenças.

 

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Correspondência

Laudicéia Ferreira Frois

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