Impacto do microbioma na COVID-19

Impact of the microbiome on COVID-19

 

Alessandro Conrado de Oliveira Silveira1

1Farmacêutico pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Especialização em Microbiologia pela PUC-PR e em Doenças Infecciosas e
Parasitárias pela Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB).

Instituição: Fundação Universidade Regional de Blumenau – Departamento de Ciências Farmacêuticas. Blumenau-PR, Brasil./em>

Recebido em 08/09/2020
Artigo aprovado em 18/09/2020
DOI: 10.21877/2448-3877.20200009

INTRODUÇÃO

A microbiota intestinal é um importante ecossistema microbiano que abriga uma grande diversidade bacte­riana. Essa comunidade atua de maneira integrada com outros órgãos, auxiliando a digestão, modulando a resposta imune, produzindo neuro­trans­missores e vitaminas, além de manter a integridade da barreira intestinal.

O mecanismo de entrada proposto para o coronavírus reside em sua capacidade de se ligar ao receptor de enzima conversora de angiotensina (ACE2), caracteristicamente um receptor de membrana extracelular expresso em células epiteliais. Em áreas do trato gastrintestinal (GI) com grande expressão de ACE2, como estômago, duodeno e reto, foi encontrada a proteína do capsídeo viral, cuja presença era notavelmente mais baixa em áreas desprovidas de receptores, como o esôfago.(1)

Dados recentes sugerem que a colonização viral por meio dos receptores ACE2 expressos no intestino resulte em eliminação viral nas fezes, na forma de diarreia, m uito tempo após a resolução da infecção respiratória inicial. Apontam ainda para o fato de que a detecção viral nas fezes ocorre independentemente da presença de diarreia e pode estar presente em até 50% dos pacientes.(2)

Dessa forma, é difícil imaginar que esse exército bacteriano intestinal não atuará de maneira decisiva na defesa e controle da infecção pelo SARS-CoV-2. Estudos(3,4) demonstram que o microbioma intestinal tem um papel importante nesses processos, agindo de duas formas principais. Uma direta, pela supressão da replicação viral, e outra indireta, de maneira inespecífica, mantendo a integridade da barreira intestinal, dificultando a passagem do vírus para a corrente sanguínea (viremia). Além disso, a colonização intensa pelas bactérias dificulta a ligação da partícula viral nos receptores celulares ACE2. Atuam também em células T reguladoras, que irão adequar a resposta imune e diminuir a probabilidade de uma resposta inflamatória exacerbada (tempestade de cito­cinas), que é um dos principais fatores de risco de gravidade na COVID-19.(1,5)

Desse modo, a imunidade inata é fundamental para que se esteja mais protegido contra uma infecção, e uma imunidade específica adequada vai fazer com que, caso infectados, se possa desenvolver uma resposta adequada à presença do vírus, diminuindo a probabilidade de desenvolver as formas graves da doença. E o microbioma atua de forma decisiva, tanto na imunidade inata quanto na específica.

Gut e colaboradores(3) avaliaram mudanças no micro­bioma intestinal de pacientes com COVID-19, comparando-o com o de um grupo controle. Esses autores verificaram que os pacientes com COVID-19 apresentaram os três principais sinais de disbiose: diminuição da diversidade, aumento de bactérias com atividade pró-inflamatória e diminuição de bactérias com perfil anti-inflamatório. Assim, foram avaliados a proteína C reativa (PCR), procalcitonina (PCT) e D dímero (DD) como indicadores da gravidade da doença. Comparados com o grupo controle, Agathobacter, Fusicatenibacter, Roseburia e Ruminococcaceae estavam diminuídos em pacientes COVID-19 e foram correla­cio­nados negativamente com níveis de PCR, PCT e/ou DD. Por outro lado, os gêneros Streptococcus, Rothia, Veillonella e Actinomyces estavam aumentados nesses pacientes, assim como os níveis de PCR, PCT e DD.

Somado a isso, Bacteroides stercoris, uma espécie bacteriana do filo Bacteroidetes, conhecida pela supressão da expressão de ACE2, que é um ponto de entrada da célula hospedeira para SARS-CoV-2, dificultando a infecção viral. Estes dados destacam um potencial papel benéfico das bactérias simbiontes no combate à infecção.(5)

A redução das Proteobactérias (bactérias Gram negativas) intestinais pode ser uma forma de reduzir o nível de sinais inflamatórios e, assim, reduzir a gravidade de uma infecção por COVID-19. Em situações nas quais há aumento de Proteobactérias no intestino, há uma disbiose, com aumento da permeabilidade intestinal e consequente vazamento de endotoxina pró-inflamatória (LPS, componente da parede celular de bactérias Gram negativas). Essa endotoxina se liga a um receptor celular chamado Toll Like Receptor 4 (TL4), gerando um quadro de toxe­mia.(2,4)

Assim como a microbiota intestinal, existem robustas evidências que sugerem a presença de microrganismos distintos no pulmão. No intestino, bacteroidetes e firmicutes são predominantes, enquanto que bacteroi­detes, firmicutes e Proteobactérias são os mais abundantes no pulmão. Curiosamente, a microbiota intestinal demonstrou afetar a saúde pulmonar por meio de uma interligação vital com os pulmões, conhecida como eixo intestino-pulmão. Esse eixo deve ser bidirecional, o que significa que as endotoxinas, metabólitos microbianos, podem impactar o pulmão através do sangue e, quando ocorre inflamação no pulmão, pode afetar a microbiota intestinal também. Isso levanta uma possibilidade interessante de que o novo SARS-CoV-2 também possa ter um impacto na microbiota  do intestino. As infecções respiratórias estão associadas a uma alteração na composição da microbiota intestinal. Uma das manifestações clínicas graves de COVID-19 é a pneumonia e a progressão para SARS, especialmente em pacientes idosos com imuno­comprometi­mento.(2-5)

É lícito considerar a melhoria da eficácia de futuras intervenções imunológicas no combate à COVID-19 com a modulação do microbioma intestinal. Para obtenção de uma microbiota saudável, a abordagem pode incluir medidas que busquem melhorar a produção intestinal de butirato, promovendo interações microbianas por mudanças na dieta e redução de estados pró-inflamatórios.

 

 

Abstract

Numerous studies demonstrate the role of the intestinal microbiota in the acquisition and evolution of SARS-CoV-2. It acts directly by inhibiting viral replication, as well as indirectly modulating the immune response. Some bacterial profiles have already been associated with a greater severity of symptoms, based on the well-known intestine-lung connection, with the production of bacterial metabolites and components of the immune response. Undoubtedly, the intestine can be the target of future interventions, through intestinal modulation, providing a new and promising approach in the therapeutic management of patients with COVID-19.

 

Keywords

ACE2; dysbiosis; probiotics; SARS; pneumonia

 

 

REFERÊNCIAS

  1. Zhang H, Li HB, Lyu JR, Lei  XM, Li W, Wu G,  et al. Specific ACE2 expression in small intestinal enterocytes may cause gastrointestinal symptoms and injury after 2019-nCoV infection. Int J Infect Dis. 2020; 96:19-24. doi.org/10.1016/j.ijid.2020.04.027.
  2. Kumar VCS, Mukherjee S, Harne PS, Subedi A, Ganapathy MK, Patthipati VS, Sapkota B. Novelty in the gut: a systematic review and meta-analysis of the gastrointestinal manifestations of COVID-19. BMJ Open Gastroenterol. 2020;7(1):e000417. doi:10.1136/bmjgast-2020-000417.
  3. Gu S, Chen Y, Wu Z, Chen Y, Gao H, Lv L, et al. Alterations of the Gut Microbiota in Patients with COVID-19 or H1N1 Influenza. Clin Infect Dis. 2020 Jun 4:ciaa709. Disponível em: https://doi: 10.1093/cid/ciaa709.
  4. Dhar D, Mohanty A. Gut microbiota and Covid-19 – possible link and implications. Virus Res. 2020 Aug;285:198018. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.virusres.2020.198018.
  5. Zuo T, Liu Q, Zhang F, Lui GCY, Tso EY, Yeoh YK, et al. Depicting SARS-CoV-2 faecal viral activity in association with gut microbiota composition in patients with COVID-19. [published online ahead of print, 2020 Jul 20]. Gut. 2020;gutjnl-2020-322294.https://doi: 10.1136/gutjnl-2020-322294.

 

 

 

 

Correspondência

Alessandro Conrado de Oliveira Silveira

Fundação Universidade Regional de Blumenau

Departamento de Ciências Farmacêuticas – Campus 3

Rua São Paulo, 2.171

89030-000 – Blumenau-PR, Brasil