Papel do laboratório clínico na pandemia de Coronavírus

The role of the clinical laboratory in the Coronavirus pandemic

 

Jorge Luiz Joaquim Terrão

Farmacêutico – Bioquímico.
Tommasi Laboratório

Recebido em 04/09/2020
Artigo aprovado em 18/09/2020
DOI: 10.21877/2448-3877.20200010

Prezado Editor

O grande surto de COVID-19 levou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a classificar a doença como uma pandemia em 11/03/2020, o que gerou uma grande corrida para o estabelecimento de tratamentos e metodologias diagnósticas mais eficazes e rápidas. A infecção humana ocasionada pelo Novo Coronavírus (SARS-CoV-2) representa uma grave emergência de saúde pública de âmbito internacional, de acordo com o anexo II do Regulamento Sanitário Internacional. Em decorrência disso, COVID-19 é um evento de saúde pública de notificação imediata. Os laboratórios de análises clínicas (LAC) são responsáveis por 95% das condutas médicas e, no caso do Coronavírus, o laboratório é o responsável pela comprovação etiológica,(1) como também contribui para o monitoramento da doença e a determinação do seu prognóstico.

A finalidade e a função dos profissionais no laboratório clínico consistem em fornecer subsídios clínicos aos médicos, permitindo confirmar ou rejeitar um diagnóstico, fornecer diretrizes de conduta para o monitoramento clínico do paciente, estabelecer um prognóstico, detectar a doença caso a caso e/ou por meio de triagem e monitorar a terapia. Embora a exatidão e a precisão tenham sido sempre pré-requisitos para um bom serviço de laboratório, a rapidez/prontidão ou “tempo de liberação” de um resultado laboratorial é igualmente decisivo para a excelência geral do serviço a ser prestado ao paciente.(2) Até onde se sabe, a transmissão se dá de pessoa para pessoa, por contato com gotículas, aerossóis e fômites contendo partículas virais. Além disso, evidências crescentes apontam para a rota de transmissão fecal-oral. O SARS-CoV-2, assim como o SARS-CoV, se liga aos receptores da enzima conversora de angiotensina do tipo 2 (ECA 2) humana, o que permite sua entrada na célula do hospedeiro. A grande afinidade do SARS-CoV-2 com a ECA 2 pode estar relacionada à alta transmissibilidade do novo CoV.(1)

O padrão ouro, em se tratando de vírus, é a cultura de tecido, onde o patógeno, ou seja, o vírus é isolado. Com o advento da engenharia genética e a genética reversa, atualmente o padrão ouro é a Reação em Cadeia da Polimerase (PCR) precedida da reação de transcriptase reversa (RT-PCR), que detecta o ácido nucleico, no caso em tela, RNA+.(3) A pesquisa de antígeno viral por métodos imunocromatográficos, seja por leitura fluorescente ou visual, é uma alternativa a ser considerada em especial por LAC’S que não possuem condições para implementação do setor de biologia molecular.

O diagnóstico laboratorial da COVID-19 usa materiais biológicos coletados das vias aéreas superiores, swab de nasofaringe e orofaringe combinados, e das vias aéreas inferiores, lavado broncoalveolar, aspirado traqueal, líquido pleural e biópsia pulmonar.(4) Entretanto, esses métodos de detecção dependem fortemente da presença do genoma viral em quantidades suficientes no local da coleta de amostras para que possa ser amplificado. Perder a janela temporal da replicação viral pode fornecer resultados falso-negativos. Da mesma forma, uma coleta incorreta de amostra pode limitar a utilidade do ensaio quantitativo baseado em PCR (qPCR). Um diagnóstico falso-negativo pode ter graves consequências, especialmente neste estágio da pandemia, pois pode permitir que pessoas infectadas espalhem o vírus, dificultando assim os esforços para conter o avanço da doença. Nessas condições, métodos de rastreamento adicionais capazes de indicar a presença de infecção, apesar da carga viral mais baixa, podem ser altamente benéficos para garantir o diagnóstico oportuno de todos os pacientes infectados. A detecção da produção de anticorpos, especialmente imunoglobulina (Ig) M, que são produzidos rapidamente após a infecção, pode ser uma ferramenta que combinada com a RT-PCR pode aprimorar a sensibilidade e a precisão da detecção. Todavia, atualmente, a extensão e a cinética temporal da resposta humoral contra o SARS-CoV-2 não são bem conhecidas.(5)

A pandemia da COVID-19 impôs aos LAC’S grandes desafios em todas as suas fases de produção. Dentre elas destaco na fase pré-analítica o fato de que mesmo tendo rotinas bem estabelecidas para higienização das mãos, desinfecção de móveis, utensílios e superfícies, estas necessitaram de adaptações específicas às características da doença, por exemplo, a sua alta transmissibilidade. A adaptação das áreas de atendimento e coleta de materiais biológicos, de forma rápida, com o objetivo de garantir o distanciamento mínimo entre colaboradores, entre colaboradores e clientes e entre clientes, para mitigar a possibilidade de transmissão do Sars-CoV-2 por gotículas e aerossóis, foi outro desafio enfrentado pelos LAC’S. A grande demanda por amostras para exames de RT-PCR exigiu dos gestores técnicos dos LAC’S a adaptação dos procedimentos operacionais padrão (POP), em especial com a paramentação e desparamentação dos profissionais responsáveis por estas coletas e mesmo para capacitação de novos colaboradores.

Os métodos sorológicos têm importantes usos clínicos e em saúde pública e clínicos para monitorar e responder à pandemia da COVID-19. Atualmente, não há vantagem evidente se os testes identificam IgA, IgM, IgG ou anticorpos totais. É importante minimizar os resultados dos testes falso-positivos, escolhendo um ensaio com alta especificidade e testando populações e indivíduos com uma probabilidade elevada de exposição prévia ao SARS-CoV-2. Alternativamente, um algoritmo de teste ortogonal (isto é, empregando-se dois testes independentes em sequência quando o primeiro teste produz um resultado positivo) pode ser usado se o valor preditivo positivo esperado de um único teste é baixo. Os anticorpos geralmente se tornam detectáveis uma a três semanas após o início dos sintomas quando as evidências sugerem que a transmissão provavelmente diminuiu bastante e que se desenvolveu algum grau de imunidade contra infecções futuras. No entanto, dados adicionais são necessários antes de se modificarem as recomendações de saúde pública com base nos resultados dos testes sorológicos, incluindo decisões sobre a interrupção do distanciamento físico e o não uso de equipamentos de proteção individual.(6)

O diagnóstico laboratorial de diversos agravos como Aids, hepatites virais e toxoplasmose, dentre outras, através de métodos sorológicos bem estabelecidos, faz parte da rotina laboratorial; entretanto, a COVID-19, por ser emergente, desafia enormemente os LAC’S no tocante à validação dos rea­gentes, pois pouco conhecemos da cinética do surgimento dos anticorpos (Ac) como resposta a esta infecção. As divergências encontradas entre os resultados das diferentes metodologias sorológicas disponibilizadas ao mercado para os LAC’S têm como base, por exemplo, o uso de diferentes antígeno-alvos empregados nos conjuntos de reagentes, a pureza destes antígenos e o tipo de Ac pesquisado (IgA, IgM, IgG e Ac totais).

A definição de protocolos de validação que permitam conhecer características como sensibilidade, especificidade e reprodutibilidade destes reagentes mobilizou as sociedades científicas do setor das análises clínicas, bem como gestores técnicos dos LAC’S, para garantir a escolha e o emprego de kits reagentes que atendam os critérios de qualidade analítica especificados e assim garantir resultados confiáveis e seguros.

Os LAC’S necessitaram adaptar seus planos de geren­ciamento de resíduos de serviços de saúde à realidade da COVID-19, por exemplo, pelo aumento do quantitativo de resíduos especificamente contaminados.

Por fim, todo o setor das análises clínicas necessita se perguntar quais os aprendizados que precisamos tirar da situação atual e como podemos nos manter minimamente preparados para situações futuras que venham a se apresentar.

 

REFERÊNCIAS

  1. Bertolini DA, Souza ELS, Silva GEM, Terrão JLJ, Lauer LA, Costa LS, et al. Handbook for COVID 19 Laboratory Management. [acesso em 30 jul 2020]. Disponível em www.ifcc.org.
  2. Henry JB. Diagnósticos clínicos e tratamento por métodos laboratoriais. Tradução: Ida Cristina Gubert. – 20ª Ed. – Barueri, SP Manole, 2008. 304 p.
  3. Menezes ME. Diagnóstico laboratorial do coronavírus (SARS-CoV-2) causador da COVID-19. 2020. [acesso em 30 jul 2020]. Disponível em: https://www.sbac.org.br/blog/2020/03/30/diagnostico-laboratorial-do-coronavirus-sars-cov-2-causador-da-covid-19/
  4. CDC – Centers for Disease Control and Prevention. Interim Guidelines for Collecting, Handling, and Testing Clinical Specimens for COVID-19. 2020. [Acesso em: 30 jul 2020]. Disponível em: https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-nCoV/lab/guidelines-clinical-specimens. html#specimen.
  5. Guo L, Ren L, Yang S, Xiao M, Chang D, Tang F, et al. Profiling Early Humoral Response to Diagnose Novel Coronavirus Disease – COVID-19. Clin Infect Dis. 2020;71(15):778-785. doi: 10.1093/cid/ciaa310.
  6. CDC – Centers for Disease Control and Prevention. Interim Guidelines for COVID-19 Antibody Testing. 2020. [Acesso em: 30 jul 2020]. Disponível em: https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/lab/resources/antibody-tests-guidelines.html.

 

 

 

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