Personalidades da História da Saúde I: Cláudio Galeno

Personalities of the History of Health I: Cláudio Galeno

A importância de se conhecer a vida pessoal de Cláudio Galeno pode ser considerada, fundamentalmente, por dois motivos: o seu gênero literário autobiográfico, uma prática típica dos intelectuais do período helénico, que possibilita uma melhor compreensão das ideias, costumes e visão de mundo na Antiguidade clássica, e o fato de a medicina galênica ser a primeira medicina de autoria na história médica, tendo em vista a recorrente incorporação de autores anônimos na medicina antiga. Um exemplo disso é o próprio Corpus Hippocraticum, cuja incerteza da real autoria dos textos de Hippocrates é irremediável.
Galeno era um grego, nascido em Pérgamo, hoje Bergama, cidade e distrito da província de Esmirna, localizada na região do Mar Egeu, na Turquia. Consta que seu nascimento tenha ocorrido próximo ao Templo de Esculápio, o Asklepieion, distante 30 km da cidade de Bergama. Aparentemente, Galeno nasceu entre os anos 129 e 131 dC, durante o reinado do imperador romano Adriano, e faleceu entre 210 e 216 dC, com a idade de 80 anos. Esse período foi um período de relativa estabilidade, apesar da quebra da chamada Pax Romana, na segunda metade de sua vida.
O pai de Galeno era arquiteto e proprietário de terras, sendo possuidor de grande fortuna. Era um homem versado em seu ofício e tinha enorme interesse, principalmente, nas ciências relacionadas à sua profissão de arquiteto, tais como matemática e ciências exatas, física, mecânica e astronomia, bem como filosofia, direito e medicina. Filosoficamente, tinha afinidade com o ideário estoico e apresentava um alto nível moral e uma clara consciência de suas obrigações. De acordo com o próprio Galeno, seu pai demonstrava grande esmero, dedicação e preocupação com sua educação e saúde. A influência paterna foi decisiva, sendo fundamental para a sua evolução científica e atitude que apresentava diante da vida.
Pérgamo era uma cidade helênica típica, rica, culta e com importantes instituições religiosas e de ensino, por isso era um grande centro cultural. Nessa cidade encontrava-se a segunda maior biblioteca da Antiguidade, tanto em qualidade quanto em número de volumes, sendo superada apenas pela Biblioteca de Alexandria no Egito. Em Pérgamo também estava o mais célebre templo do helenismo, o Templo de Esculápio. Além de um próspero comércio, uma de suas principais atividades econômicas era a produção e a confecção dos famosos pergaminhos. Importa mencionar que a coleção de manuscritos em pergaminho, que continham o saber de todo o mundo antigo, era uma prática incentivada pelos governantes locais, desde os primeiros tempos do domínio helênico na região. Foi nesse ambiente, dentro de uma sociedade letrada, que se deu o início da formação médica e filosófica de Galeno.
Galeno iniciou, com 16-17 anos, seus estudos médicos no Asklepieion de Pérgamo, onde os doentes recebiam diagnóstico e tratamento, através de sonhos. No templo, trabalhava como “terapeuta”, como eram conhecidos os estudantes de medicina. Ainda em Pérgamo, frequentou as escolas dos dogmáticos, que seguiam uma corrente humoralista hipocrática, dos empíricos, que seguiam uma linha reducionista do saber médico, dando ênfase à experiência pessoal e ao conhecimento dos fármacos, e dos pneumáticos, que explicavam a saúde e a doença pela influência e variação da respiração vital (pneûma). Nesse período, suas primeiras investigações foram anatômicas.
Cerca de cinco anos depois de iniciado seus estudos em Pérgamo, e após a morte de seu pai, Galeno se transfere para Esmirna. Situada ao sul de Pérgamo, no mar Egeu, Esmirna era um outro centro intelectual e científico da época. Nesta cidade estudou com importantes mestres, aprendendo semiologia clínica e aprofundando seus conhecimentos sobre anatomia, fisiologia e terapêutica, bem como intensificando a leitura dos escritos hipocráticos.
Depois de sua estada em Esmirna, seguiu para Corinto, passando primeiramente em Pérgamo para estudar anatomia. No entanto, em Corinto, não se deteve por muito tempo, indo, em seguida, para Alexandria, no Egito, onde ficou por cerca de cinco anos. Nessa época, o Egito estava sob o domínio de Roma, que havia conquistado a região há mais de um século. Alexandria era o principal porto do Egito e a cidade tinha se convertido em uma metrópole muito bem organizada, rica e culta, sendo, inclusive, um dos maiores centros culturais helénicos da Antiguidade. Em Alexandria, Galeno completou sua formação médica, incorporando a anatomia alexandrina, que realizava dissecações ou vivissecções de corpos humanos, e adensando seu hipocratismo. Ao viajar através do Nilo, Galeno entrou, ainda, em contato com múltiplas práticas farmacológicas do Oriente, desenvolvidas na Índia e na Pérsia. Apesar de certo isolamento e secretismos das escolas médicas de Alexandria, como criticado pelo próprio Galeno, os anos de permanência nessa cidade e suas viagens pelo Egito contribuíram enormemente para sua iniciação e formação nos métodos de diagnóstico e terapêutico, particularmente na farmacoterapia. Em decorrência do intenso contato com os diversos grupos médicos, Galeno desenvolveu a ideia de que a medicina implicava metodologia e procedimentos teóricos. De acordo com Galeno, o método lógico tem especial importância, pois permite ao médico penetrar na estrutura e funcionamento do corpo humano.
Após cinco anos, retorna à Pérgamo, permanecendo ali outros cinco, antes de partir para Roma. Em Pérgamo, é nomeado o Médico dos Gladiadores pelo sacerdote maior do Templo de Esculápio. O trabalho com os gladiadores deu uma boa prática cirúrgica a Galeno, agregando mais uma expertise à sua formação médica. Na verdade, a estada de Galeno em Pérgamo foi decisiva em três aspectos profissionais fundamentais. Adquiriu uma sólida experiência em cirurgia, deu início a investigações anatomofisiológicas do trato gastrointestinal, a estudos de mecânica da respiração e a pesquisas sobre o sistema nervoso, bem como consolidou sua formação em dietética e atividade física, incorporando a higiene como prática associada. Além disso, considerou como prerrogativa médica a prescrição de exercícios físicos.
Devido à instabilidade política e econômica causada por guerras na região, Galeno deixa Pérgamo e viaja a Roma, permanecendo lá por cerca de quatro anos. Em Roma, Galeno se integrou rapidamente à alta sociedade romana e se interessou por centros editoriais e livrarias, bem como por círculos filosóficos e médicos. Com grande assiduidade, frequentava o chamado Templo da Paz, que se caracterizava por um centro intelectual onde havia discussões filosóficas e científicas. Frequentava ainda cursos em escolas filosóficas romanas e, a partir disso, fez grande amizade com muitos filósofos e médicos do império. Suas ideias e trabalhos revolucionários apresentados no Templo da Paz e uma série de êxitos médicos, clínicos e cirúrgicos abriram, para Galeno, as portas de diversos grupos sociais, tais como intelectuais, aristocratas e círculo imperial, que exortavam seu trabalho. No entanto, havia também certa resistência de alguns membros da comunidade médica romana às ideias de Galeno. Durante essa primeira estada em Roma, Galeno escreveu diversas obras, incluindo importantes textos sobre anatomia e fisiologia.
Tendo estado por três anos em Roma, retorna a Pérgamo. Sua situação de retorno não é muito clara, mas é possível que esteja associada a questões de vida social e profissional, ao crescimento da Peste Antonina em Roma e à melhora das condições políticas na região de sua terra natal. Baseado em Pérgamo, continuou desenvolvendo seu trabalho como clínico, investigador e escritor. Contudo, dois anos depois de sua chegada em Pérgamo, os coimperadores romanos Marco Aurélio e Lúcio Vero chamam Galeno à Aquileia, na Península da Itália, onde estavam aquartelados, e o nomeiam médico da corte, em decorrência da Peste que se alastrava pelo território romano. Com a chegada da Peste em Aquileia, a corte e o exército romano e o próprio Galeno voltam para Roma. Em Roma, pela segunda vez, a vida de Galeno era dividida entre suas funções de médico imperial, a prática da medicina, o ensino e a pesquisa e a redação de suas mais importantes obras médicas e filosóficas. Em verdade, os sete primeiros anos de sua segunda estada em Roma foram os anos de sua máxima criação intelectual, tanto em termos de quantidade de obras quanto de assuntos abordados. Nesta segunda estada em Roma, Galeno seguiu como médico dos imperadores romanos por aproximadamente quarenta anos e, a pesar de menos intensa após os sete anos iniciais, manteve uma rotina de estudos e publicações até sua morte com cerca de 80 anos.
Dentre os vários estudos publicados por Galeno ao longo de sua carreira médica, podem ser listados: Dos Procedimentos Anatômicos; A Anatomia de Marino; Sobre a Anatomia do Útero; Sobre a Experiência em Medicina; Sobre a Localização das Enfermidades; Sobre o Movimento do Tórax e do Pulmão; Sobre o Uso das Partes; Sobre os Procedimentos Anatômicos; Sobre a Demonstração; Sobre o Método Terapêutico; Sobre a Voz e a Respiração, Sobre as Doutrinas de Hippocrates e Platão; Sobre as Faculdades e Temperamentos dos Medicamentos Simples; Sobre a Higiene [ou Conservação da Saúde]; Sobre os Sonhos; Sobre os Elementos Segundo Hippocrates; Sobre os Temperamentos; Sobre as Faculdades Naturais; Sobre a Discrasia Anômala, Sobre a Consunção, Sobre a Faculdade dos Alimentos, Sobre a Doutrina dos Pulsos; Sobre a Diferença das Enfermidades; Sobre as Causas das Enfermidades; Sobre a Diferença dos Sintomas; Sobre as Causas dos Sintomas; Sobre a Diferença das Febres; Sobre o Uso da Respiração; Sobre a Formação do Feto; Comentários às Epidemias; Sobre as Faculdades da Alma; Sobre as Próprias Doutrinas; Sobre o Prognóstico, a Epigenes, Sobre os Costumes; Conselhos para tratamento de uma Criança Epilética; Sobre os Livros Próprios; Sobre a Ordem dos Livros Próprios; Sobre a Cura por Flebotomia; Sobres os Antídotos e A Natureza do Homem.
Dos muitos achados e descobertas de Galeno, podem ser citados: a demonstração do controle de alguns músculos pela coluna espinhal; identificação de sete pares de nervos cranianos; demonstração de que o cérebro era o órgão encarregado do controle a voz; demonstração das funções dos rins e bexiga; demonstração de que pelas artérias circulavam sangue e não ar; descrição das diferenças estruturais entre veias e artérias; descrição das válvulas cardíacas e descoberta de diferentes doenças infecciosas e sua forma de propagação. Galeno deu também enorme importância aos métodos de conservação e preparação dos fármacos
Por fim, importa mencionar que o pensamento médico e filosófico galênico pode ser colocado num sistema fundamental composto por cinco elementos principais: hipocratismo platônico e aristotélico, adotando a teoria dos quatro humores de Hippocrates [sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra] com reservatórios em distintos órgãos [coração, cérebro, fígado e baço] e seguindo o esquema de três partes da alma platônica [racional localizada no cérebro, irascível no coração e concupiscente no fígado] e a noção aristotélica de partes similares e partes dissimilares; humoralismo, sistematizando a ideia de que a saúde e a doença são decorrentes do equilíbrio e do desequilíbrio dos humores do corpo; vitalismo estoico, assumindo que a natureza cura-se a si mesma por sua vis medicatrix ou seu poder medicinal; corporalismo, acreditando que o corpo é uma unidade composta de partes orgânicas e concebendo essas partes como territórios anatômicos bem delimitados, com função própria e única, e teleológico, onde tudo é explicado tendo em conta seus efeitos finais, isto é, as causas finais e a justificação de sua existência e atuação. Esses cinco elementos do pensamento galênico determinam uma terapêutica irremediavelmente dependente da “vontade” da natureza. De fato, o médico galênico, ainda que mais interventor do que o hipocrático, pode ser considerado como um ajudante, um colaborador do poder medicinal e curativo da própria natureza.

Referências

  1. Galeno C. De Locis Affectis [Sobre la Localización de las Enfermidades]. Tradução: Aparicio AS. Editorial Gredos: España, 1977. 462pp.

  2. Madera PG. Manual de História de la Medicina. Grupo Editorial 33: España, 2009. 277pp.

  3. Rovetto P. Ideas Médicas: Uma Mirada Histórica. Universidade del Valle. Colombia, 2010. 316pp.

Paulo Murillo Neufeld, PhD

Editor-Chefe da Revista Brasileira de Análises Clínicas