Personagem da História da Saúde III: Paracelso

Até o final da Idade Média, o conhecimento era um campo unitário constituído basicamente por conceitos integrados de aristotelismo, tomismo e galenismo, não obstante haver a circulação de pensamentos minoritários, como os dos Franciscanos de Oxford, que usavam novos materiais filosóficos, como tratatos árabes, novas traduções de Aristóteles e obras neoplatônicas inéditas. Esse arcabouço de ideias que também compunha o conhecimento médico da época começou a ruir com a epidemia da Peste Negra e com o advento da Reforma Protestante e da Contrarreforma Católica. Essas mudanças de paradigmas provocaram uma revolução de ideias e, com a entrada no cenário filosófico de novos pensadores, a chegada do Renascimento inaugurou uma nova forma de pensar, não só o mundo, mas também a medicina e suas instituições. No Renascimento, por exemplo, profundas alterações na concepção dos hospitais foram observadas. Esses passaram a ser centros de assistência a enfermos e não mais um depósito de pobres, mendigos ou excluídos de toda sorte. Uma secularização progressiva dos hospitais teve curso, de maneira que essas instituições passaram a cuidar dos indivíduos mais por razões médicas e menos por razões de caridade cristã. Importantes mudanças conceituais foram observadas ainda no campo da anatomia, cirurgia, ginecologia e obstetrícia, anatomia patológica, clínica e epidemiologia, terapêutica e prática médica.

O médico renascentista era um homem de ciência e ocupava um lugar de prestígio na sociedade. Nesse período, a medicina era exercida livremente e seus rendimentos eram elevados. Dentre os novos filósofos e pensadores médicos, Jean Fernel, autor dos termos “fisiologia” e “patologia”, e Paracelso, considerado o fundador da bioquímica e toxicologia e reformador do uso de medicamentos e da terapêutica, estão entre os mais relevantes. Tomando Paracelso em perspectiva, esse foi um médico que pensava e falava diferente dos demais bem como escrevia também de forma diferenciada, haja vista seus textos médicos estarem em idioma alemão e não em latim ou grego, como era o costume da época. Figura controversa, com habilidades grandiosas e conhecimentos revolucionários, mas também com um radicalismo violento e um caráter contencioso e intransigente, manteve-se isolado das pessoas de seu tempo, por praticamente toda a sua vida como médico. Uma extensa literatura científica, contudo, foi deixada por ele, e seus escritos versavam sobre medicina, química farmacêutica, botânica, astronomia, astrologia, teologia, filosofia, ciências naturais e alquimia.
Paracelso, cujo nome verdadeiro era Phillippus Theophrastus Aureolus Bombastus von Hohenheim, nasceu em Einsendeln, na Suíça, em 1493. Era filho único do médico alemão Wilhelm Bombast von Hohenheim com Else Ochsner. Recebeu os primeiros ensinamentos de seu pai, que tratava os peregrinos no monastério de Einsendeln. Wilhelm von Hohenheim instruiu o filho na observação da natureza e seus fenômenos, nas ciências médicas, química e farmacologia e mineralogia. Com a morte de sua mãe, aos 9 anos, Paracelso e o pai se transferiram para Villach, na região austríaca de Caríntia. Em Villach, Wilhelm von Hohenheim passou a lecionar alquimia teórica e prática na Escola de Mineração Bergschule, mas Paracelso foi enviado para estudar no Mosteiro de Santo André, em Salzburg. Nesse monastério, Parcelso entrou em contato com o bispo Eberhard Baumgartner, considerado um renomado alquimista. Após seus estudos regulares no monastério, Paracelso frequentou a Escola Superior em Viena e estudou medicina em Ferrara, na Itália, onde se doutorou (1516-17) em “ambas as medicinas”, isso é, em medicina interna e cirurgia.

Já como médico, mudou seu nome suíço para Paracelso (“melhor que Celso”), num claro deboche à figura de Aulus Cornelius Celsus, o grande médico romano do século primeiro. Descontente com sua formação médica, iniciou uma viagem de quase uma década (1517 a 1526) por toda a Europa, para adquirir maior vivência prática. Nesse período errante, trabalhou nas minas do alquimista Sigismund Fugger, adquirindo bons conhecimentos sobre minérios e metais e estudando sobre as doenças ocupacionais dos mineiros. Posteriormente, frequentou as aulas de Johannes Trithemius, famoso alquimista, astrólogo e ocultista e abade do Mosteiro de São Jorge, em Württemberg, na Alemanha. Em seguida, frequentou diferentes universidades em Viena, Wittenberg, Leipzig, Heidelberg e Colônia. Trabalhou em guerras como cirurgião militar, na Holanda e, algum tempo depois, na Dinamarca e em Nápoles, na Itália. Viajou ao Império Russo e à Ásia Central. Visitou ainda o Egito, Jerusalém, países da Península da Arábia e Constantinopla. Esteve também preso na Alemanha por desacato à classe médica e por críticas veementes à prática da medicina tradicional da época, cuja base incluía Hipócrates, Galeno, Celso e Avicena.

Ao retornar de seu périplo, fixou-se em Salzburg para abrir um consultório, organizar as informações obtidas em suas viagens e escrever textos médicos e científicos. Nesse período, deu início à elaboração de um sistema sobre a origem das enfermidades. Todavia, Paracelso não permaneceu muito tempo em Salzburg, transferindo-se, após alguns meses, para Estrasburgo, na França, onde se estabeleceu como médico de sucesso, tratando personalidades como Erasmo de Rotterdam e Johann Froben, entre outros. Em Estrasburgo, escreveu ainda obras fundamentais de medicina. Por indicação de Erasmo de Rotterdam, foi convidado a trabalhar como médico em Basel, na Suíça, e a assumir como catedrático na universidade da região. Por seu comportamento nada ortodoxo e fortemente intem¬pestivo, entrou mais uma vez em conflito com as autoridades e com seus colegas médicos. Na universidade, ministrava as aulas em alemão, ao invés do erudito latim, não trajava roupas acadêmicas, mas sim seu avental de couro de alquimista, e questionava abertamente os princípios médicos e farmacológicos fundados na Antiguidade e no período medieval e as práticas médicas de seus contemporâneos. Como ficara insustentável sua permanência na região, Paracelso decidiu deixar a Basileia e iniciou uma nova fase de viagens e perambulações, estando em Colmar, Nuremberg, Sankt Gallen, Appenzellerland, Innsbruck, Ulm, Alta Áustria, Klagenfurt e, finalmente, Salzburg. Paracelso morreu em 1541, em Salzburg, aos 48 anos, devido ao seu estilo de vida conturbado, do consumo de álcool e de preparações com mercúrio e alcaloides.

Paracelso consagrou sua vida à medicina, sendo extremamente preocupado com os indivíduos pobres e enfermos, o que o levava a pesquisar novas formas de tratar as doenças dessa população marginalizada. Em sua vida como médico efetuou poucas colaborações com outros colegas médicos e alquimistas, em decorrência da resistência geral às suas ideias e ao seu modo belicoso de contestar aquilo que considerava equivocado. Todavia, procurava entrar em contato com pessoas que tinham ofícios ou conhecimentos vulgares, como curandeiros, parteiras, barbeiros, banhistas e cuidadores, verdugos, necromantes, místicos e iniciados em ocultismo. Por ter viajado inúmeras vezes e entrado em contato com todo o tipo de gente, Paracelso foi construindo um modo particular e incisivo de pensar em relação à educação nas escolas médicas, que ocorria sem ensino prático e apenas com a observação de urina, e com um reduzido tempo para a formação do profissional médico, à clínica médica que era baseada apenas em sistemas teóricos e não na observação do doente e da doença, à iatroquímica, que representava o uso de compostos químicos para tratar as diferentes enfermidades, ao mau uso e à aplicação de certas substâncias tóxicas como o mercúrio e o arsênico, à baixa qualidade dos insumos, produtos e preparados alquímicos, à psique e à depressão como portas de entrada de todas as patologias, à origem química das enfermidades, à inter-relação entre o ser humano, a natureza, o cosmos e as doenças, à conexão entre o ser humano, Deus e o processo saúde-doença e à filosofia natural e moral como conformadoras da atividade e da ética médica.

A maioria dos textos de Paracelso é póstuma, e esses trabalhos apresentam interpretação difícil por estarem em idioma alemão antigo e pela forma como foram escritos, cheios de neologismos, linguagem extravagante e bizarra e repleta de crenças e superstições provenientes do folclore médico da época, compiladas de suas diversas viagens. Importa mencionar que o pensamento de Paracelso não era científico, pois carecia de evidências experimentais, sendo suas assertivas baseadas em analogias próprias da medicina tradicional de seu tempo e de um resquício do galenismo. Seu primeiro texto impresso, editado na Basileia, em 1526, foi um manifesto onde afirmava que livraria a medicina de seus piores erros e enganos, mediante suas observações da natureza, confirmadas por sua ampla prática e larga experiência clínica e alquímica.

Paracelso publicou, em 1530, dois textos intitulados Paramirum e Paragranum. Paramirum conti¬nha um esboço de antropologia médica que propunha que a saúde e a doença seriam regidas por cinco entes: o astral, que estaria ligado ao ciclo dos anos, ao ciclo dos astros e ao biorritmo do ser humano; o venenoso, que estaria ligado à ingestão e à inalação de substâncias venenosas e tóxicas; o natural, que estaria associado à influência da natureza e do cosmos; o espiritual, que estaria associado à influência do mental e da psique; e o divino (providência e fatalidade), que estaria associado à influência de Deus sobre a saúde e a doença e sobre o médico que assiste ao paciente. Paragranum, por sua vez, tratava mais especificamente da medicina e do médico. Nessa obra, Paracelso afirmava que a medicina se apoiava em quatro colunas: a filosofia da natureza, que estaria ligada às ciências naturais; a astronomia, que estaria associada à ideia de que o homem é tão complexo quanto o cosmos; a alquimia (iatroquímica), que estaria ligada à extração de substâncias minerais e vegetais para a preparação de medicamentos para a cura de enfermidades; e a virtude (ética), que estaria ligada ao amor pelo ser humano e pela arte de curar através da medicina e da alquimia.
Relativamente à alquimia, Paracelso deu a ela importância fundamental no que diz respeito à manipulação das substâncias empregadas na fabricação de medicamentos. De acordo com suas ideias, não existiriam inequivocamente substâncias boas ou más, úteis ou nocivas, esses conceitos estariam associados à dose. A arte da alquimia, afirmava Paracelso, consistia em preparar o medicamento com a dosagem correta, separando o útil do inútil, o bom do mau, a essência das impurezas e o curativo do veneno. Isso porque Paracelso acreditava que existiam dois diferentes princípios nas substâncias de partida: o princípio bom, fino, espiritual e curativo e um mau, grosso, material e danoso. Essa separação alquímica deveria ocorrer através de diversos processos tais como a fermentação, destilação e incineração.

Importa considerar também que, com a alquimia, Paracelso vinculou sua doutrina dos três princípios, chamados espagíricos e constituintes de todos os corpos, matéria e vida, às seguintes substâncias: o mercúrio, o enxofre e o sal. O mercúrio representaria o princípio da fusibilidade e da volatilidade, constituindo o espírito, o enxofre representaria o princípio da combustibilidade, seria quente, seco e forte, constituindo a alma, e o sal representaria o princípio da incombustibilidade, seria sólido, cristalino e frio, constituindo o corpo. Esses três princípios caracterizariam as enfermidades, segundo Paracelso. Desse modo, as enfermidades mercuriais estariam associadas aos transtornos neurológicos e psicossomáticos, as enfermidades sulfúricas corresponderiam às enfermidades inflamatórias agudas, musculares e febris, as enfermidades salínicas se traduziriam por enfermidades crônicas e degenerativas. Somado a isso, Paracelso criou uma rede de conexões entre esses três princípios e os temperamentos, os elementos naturais, os planetas, as plantas e os metais.

Levado por um espírito religioso cristão, mais místico do que crente, Paracelso propôs ainda um teoria chamada teoria das assinaturas, que afirmava que as plantas medicinais, incluindo as venenosas, eram medicamentos criados por Deus. Na verdade, a ideia seria a de uma medicina botânica oferecida por Deus ao homem. De acordo com Paracelso, Deus havia colocado sinais secretos nas plantas medicinais e esses sinais deveriam ser conhecidos pelos alquimistas, que as utilizariam de maneira correta para a produção de medicamentos. A semelhança de formas e calor das plantas medicinais com os órgãos do corpo humano e os humores seria, especialmente, uma indicação divina para seu uso em dada enfermidade e em dado órgão ou sistema.

Paracelso deixou uma obra escrita monumental. Seus textos e ideias acabaram com a visão tradicional de uma medicina baseada na patologia humoral, dando início a uma forma nova de se pensar a medicina, fundamentada em investigações científicas. Com base nisso, uma de suas mais importantes obras, publicada em 1536, foi a enciclopédia Grande Cirurgia, com 530 páginas e com instruções para a intervenção cirúrgica de feridas e com comentários sobre o princípio da força curativa da natureza. Outras publicações nessa linha incluem a primeira monografia dedicada a uma enfermidade ocupacional, a enfermidade dos mineiros, escrita entre 1534 e 1538, uma monografia com a descrição da sífilis e sugestão do uso de mercúrio como medicamento para o seu tratamento, publicada em 1553, uma monografia sobre o bócio endêmico vinculando-o com o cretinismo, publicada em 1603, e uma monografia sobre o tratamento psicoterapêutico das doenças mentais.

BIBLIOGRAFIA
• Bambini J. Historia de la medicina. Barcelona. Gedisa Editorial. 2011, 172pp.
• Kerckhoff A. La enfermidad y la cura: Conceptos de uma medicina diferente. México. Fondo de Cultura Econômica. 2015, 298pp.
• Rovetto P. Ideas Médicas: Uma mirada histórica. Colombia. Programa Editorial Universidad del Valle. 2008, 316pp.

Paulo Murillo Neufeld, PhD
Editor-Chefe da Revista Brasileira de Análises Clínicas