Personagem da História da Saúde VI: George Nicholas Papanicolaou

Personalities of History of Health VI: George Nicholas Papanicolaou

fig1George Nicholas Papanicolaou (Fig. 1) nasceu no ano de 1883, em Kymi, uma pequena cidade portuária nas encostas orientais da ilha grega de Eubeia, no mar Egeu. Era o terceiro filho de Maria e Nicholas Papanicolaou, de um total de quatro. Nicholas Papanicolaou era médico, bem como político, tendo sido senador e prefeito de Kymi. Maria Papanicolaou, por sua vez, era reconhecida por ser uma mulher de grande cultura e posição de destaque na sociedade grega da época. Papanicolaou foi uma criança carismática, inteligente e sensível, tendo tido uma infância normal em seu país. Após seus estudos iniciais em Kymi, transferiu-se para Atenas para cursar o ensino secundário e estudar francês, alemão e violino. Era considerado um jovem de extrema erudição, de comportamento polido e com uma grande capacidade de articulação de ideias e argumentação.

Por influência de seu pai, em 1898, com a idade de 15 anos, candidatou-se e foi aceito na Universidade de Atenas para estudar medicina. Em 1904, formou-se como médico, com louvor. Terminada a graduação, foi convocado para o serviço militar obrigatório, servindo no Terceiro Regimento de Infantaria do Exército Grego. Em janeiro de 1906, foi promovido a cirurgião militar assistente, permanecendo nesse posto até sua baixa em agosto de 1906. Papanicolaou, então, retornou a Kymi e iniciou uma carreira médica com seu pai. No entanto, como tinha mais interesse pela carreira de pesquisador, decidiu deixar a Grécia, em 1907, indo à Alemanha para mais estudos. Nesse país, passou por Jena para estudar a Teoria da Evolução das Espécies com Ernst Haeckel (1834-1919), transferindo-se depois para Freiburg para estudar genética com August Weismann (1834-1914), chegando, por fim, em Munique para estudar com Richard Goldshmidt (1878-1958) no Instituto de Zoologia, um dos melhores centros europeus de pesquisa, onde obteve seu doutorado sobre a diferenciação sexual, em 1910. Esse instituto foi de grande importância para ele porque nessa instituição pôde desenvolver habilidades e competências no método científico, as quais seriam fundamentais para seu futuro trabalho em citologia clínica.

Ao retornar para Kymi, passando por Atenas, Papanicolaou conheceu Andromache (Mary) Mavroyeni, que descendia de uma tradicional família de militares, com quem se casou em 25 de setembro de 1910. Após seu casamento, foi para a França e, por influência de seu sogro, conseguiu uma posição de investigador no Instituto Oceanográfico, no Principado de Mônaco. No período em que trabalhou nesse Instituto (1911-1912), participou de várias expedições científicas para explorar, como fisiologista, a vida marinha do Mediterrâneo e de outros ecossistemas locais, sendo que, em uma de suas viagens, participou de uma expedição com o Príncipe Albert I de Mônaco, no Navio Real L’Hirondelle II. Com a morte de sua mãe e o início da guerra dos Bálcans, interrompeu suas atividades de pesquisa e, em 1912, retornou à Grécia. Em seu país, cogitou assumir uma posição na Universidade de Atenas, contudo, foi convocado para a guerra, servindo como tenente no Corpo Médico das Forças Armadas Gregas.

Durante o tempo em que serviu como médico militar entrou em contato com muitos voluntários gregos que haviam emigrado para os Estados Unidos e relatavam com frequência a existência de uma gama de oportunidades profissionais para aqueles que desejavam uma colocação em suas áreas de atuação. Em decorrência disso, decidiu emigrar para os Estados Unidos com sua mulher, chegando em Nova York em 1913. Na América, por ter trazido poucos recursos (US$250,00) e ter tido dificuldades para encontrar emprego, Papanicolaou e sua esposa começaram a trabalhar como vendedor de tapetes e costureira em uma grande loja de departamentos (Armazéns Gimble). Subsequentemente, ele trabalhou como violinista em restaurantes locais e como arquivista no jornal grego Atlantis. Por indicação de Thomas Hunt Morgan (Premio Nobel de Medicina de 1933), que já havia entrado em contato com a tese de doutorado de Papanicolaou e conhecia suas ideias sobre diferenciação sexual, foi lhe oferecida uma posição como pesquisador no Departamento de Patologia e Bacteriologia do Hospital da Universidade de Nova York, o que ele prontamente aceitou. Nessa instituição, sua principal pesquisa era com oocistos de cobaios coletados em períodos determinados do ciclo estral desses animais para estudos de fisiologia do aparelho reprodutor. Em 1914, transferiu-se para o Departamento de Anatomia da Faculdade de Medicina da Universidade de Cornell, onde ficou toda a sua vida profissional, dando continuidade aos seus estudos sobre a diferenciação sexual e desenvolvendo suas pesquisas em citopatologia. Nesse momento, sua esposa se juntou a ele como sua técnica assistente.

Na Universidade de Cornell, Papanicolaou começou a trabalhar com Charles Stockard, investigando os efeitos do vapor de álcool sobre o ciclo estral dos cobaios e o papel dos cromossomos X e Y na determinação sexual.  Em 1915 publicou seus achados preliminares na Revista Science com o título Sex Determination and Sex Control in Guine Pig. Em 1916, estudando os estágios da ovulação, inicialmente a partir da análise de ovários retirados de animais sacrificados, e, posteriormente, empregando um pequeno espéculo nasal para a avaliação diária da descarga intravaginal, Papanicolaou decidiu confeccionar esfregaços das secreções vaginais e observar no microscópio, o que revelou a existência de uma relação entre tipos citológicos e alterações ovarianas e uterinas. Com esse achado, postulou que mudanças no ciclo ovariano e o status hormonal dos cobaios poderiam ser determinados pela observação microscópica das alterações celulares em esfregaços de fluidos vaginais. Os resultados dessa pesquisa foram publicados, em colaboração com Stockard, em 1917, na revista Science e no American Journal of Anatomy.

Em 1920, encorajado por seus resultados com animais, interessou-se em estudar a citologia do sistema reprodutivo humano. Curiosamente, iniciou seus estudos utilizando esfregaços de sua própria esposa Mary. Posteriormente passou a trabalhar com esfregaços vaginais obtidos de pacientes atendidas na Clínica Ginecológica do Hospital Universitário de Cornell e no Hospital de Mulheres da Cidade de Nova York. Em 1923, incidentalmente observou a presença de células neoplásicas, o que fez com que se fixasse nesse achado e passasse a buscar, de forma sistemática, esse tipo celular nos esfregaços vaginais. Em 1925 aprovou um projeto de pesquisa onde o staff feminino de um dos hospitais em que trabalhava deveria comparecer, diariamente, durante 2 a 3 meses, no Serviço de Ginecologia para que fossem realizados exames citológicos. Com esse projeto, pôde definir o que seriam as alterações fisiológicas decorrentes do ciclo menstrual/ hormonal e demonstrar o valor de também desenvolveu uma técnica para a conservação das células, através de fixação e coloração do material vaginal. Em 1928, apresentou suas conclusões em uma comunicação intitulada New Cancer Diagnosis, na III Race Betterment Conference. Com esse método esfoliativo, conseguiu demonstrar que era possível detectar uma neoplasia da esfera ginecológica bem antes de ser palpada ou observada diretamente. No entanto, a comunidade de médicos patologistas da época não deu crédito ao seu método, pois considerava a biópsia de colo de útero um método diagnóstico mais efetivo. Na verdade, o método foi considerado bom para avaliações hormonais.

Desapontado com a pouca receptividade da comunidade científica em relação ao seu método, Papanicolaou passou a focar na citologia hormonal e não mais no diagnóstico de câncer de colo de útero. Contudo, dez anos depois, em 1939, quando Joseph Hinsey tornou-se Chefe do Departamento de Anatomia da Universidade de Cornell, houve um novo interesse pelo trabalho de Papanicolaou. Nessa época, com a associação de outros pesquisadores da área da ginecologia e patologia, tais como Herbert Traut, Andrew Marchetti, Hashime Murayama e Henricus Stander, o estudo da citologia esfoliativa como meio de diagnóstico para o câncer uterino foi retomado de forma vigorosa. Novos projetos e experimentos foram propostos e um deles incluía a realização de exames citológicos em todas as mulheres atendidas no Serviço de Ginecologia do Hospital de Nova York.  A partir desses estudos, foi possível comprovar que, de fato, a técnica de Papanicolaou se tratava de uma prova simples, não dolorosa e que, mediante o uso de uma espátula e uma pequena escova, obtinham-se células da vagina e do colo uterino que, posteriormente, eram coradas e visualizadas em microscópio. O tratamento estatístico dado aos resultados das pesquisas cito­patológicas foram contundentes e mostraram que o uso rotineiro da técnica permitia diagnosticar um bom número de casos de neoplasias assinto­máticas que não eram visíveis à inspeção médica e que só eram demonstradas por biópsia. Em 1941, Papanicolaou e Trut apresentaram seus achados à comunidade científica no seminal artigo intitulado The Diagnostic Value of Vaginal Smears in Carcinoma of the Uterus que foi publicado no American Journal of Obstetrics and Gynecology (Fig. 2). Pouco tempo depois, em 1942, Papanicolaou e Trut publicaram também uma importante monografia cujo título era Diagnosis of Uterine Cancer by the Vaginal Smear.

Em decorrência da divulgação e repercussão dos novos resultados das pesquisas de Papanicolaou, em 1947, a Universidade de Cornell realizou o primeiro de uma série de cursos de formação em citologia esfoliativa com o objetivo de treinar patologistas, ginecologistas e oncologistas no fundamento e na interpretação dos achados citológicos. Com isso, o laboratório de Papanicolaou se transformou em um centro de referência e treinamento internacional em citodiagnóstico. Em 1948, a recém-criada American Cancer Society realizou a I National Cytology Conference, em Boston, e criou um programa de citologia para a prevenção de câncer de colo de útero. Esse programa de citologia diagnóstica teve uma expansão quase que exponencial com a inauguração do programa de informação e triagem de massa de diferentes grupos.

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Fig. 2. Primeira página do artigo de Papanicolaou & Traut considerado a Pedra Fundamental da citologia clínica, publicado na American Journal of Obstetrics and Gynecology, em 1941.

Papanicoloau também testou sua técnica em outros sistemas orgânicos, tais como sistema respiratório, trato urinário, aparelho gastrointestinal, glândulas mamárias, secreções serosas e efusões, concluindo que células esfoliadas, normalmente descartadas e negligenciadas, eram de grande importância como material de diagnóstico, à semelhança das secreções vaginais. A partir dessas investigações, definitivamente nascia a citologia esfoliativa como especialidade na área médica e da saúde. Um marco temporal foi a publicação, por Papanicolaou, em 1954, do Atlas of Exfoliative Cytology.

Nos anos 50, a validade científica da técnica de Papanicolaou como um importante método de diagnóstico precoce de câncer em diferentes órgãos e sistemas foi definitivamente estabelecida no mundo. A realização do I International Congress of Cytology em Chicago, em 1956, e do I Symposium de Cytologie Exfoliative em Bruxelas, em 1957, com a presidência de Papanicolaou, e a criação da Acta Cytologica, por George Wied, também em 1957, foram de grande importância para esse reconhecimento. Importa mencionar que, com a difusão do uso da técnica de Papanicolaou, um declínio de cerca de 70% nas taxas de mortalidade por câncer de colo de útero tem sido relatado desde a metade do século XX.

George Papanicolaou tornou-se Professor Emérito da Universidade de Cornell, em 1951, tendo recebido muitos prêmios, comendas e honrarias nos Estados Unidas, na Grécia e em diversos outros países. Em 1960, foi indicado para o Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina. Papanicolaou publicou mais de 150 artigos, monografias e livros. No final de sua vida, foi convidado para dirigir o Cancer Research Institute, em Miami, que seria inaugurado em 13 de maio de 1962, dia de seu aniversário de 79 anos; no entanto, em 19 de fevereiro desse mesmo ano sofreu um infarto, vindo a falecer. Por sua decisão, foi cremado em Nova Jersey.  Seus contemporâneos relatam que ele era um homem simples, cheio de expectativas e planos, atento e consciente de sua missão, corajoso e que assumia riscos e um dedicado professor.

 

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Paulo Murillo Neufeld, PhD                                        

 

Editor-Chefe da Revista Brasileira de Análises Clínicas

Recebido em 06/09/2019

Aprovado em 06/09/2019

DOI: 10.21877/2448-3877.201900905