Emergência de Enterobacterales produtoras de metalo-beta-lactamases em um Hospital de Referência para Covid-19

Emergency of Enterobacterales producing metallo-beta-lactamases in a referral hospital for Covid-19

 

Valéria Martins Soares1, Diana Manzi Viegas1

 

1  Hospital Júlia Kubitschek – Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG, Brasil.

 

Recebido em 23/02/2022

Aprovado em 19/05/2022

DOI: 10.21877/2448-3877.202200025

INTRODUÇÃO

 

A resistência aos antimicrobianos é uma crescente ameaça à saúde pública mundial e  gera muita preocupação e impactos negativos. A produção de enzimas que degradam os carbapenêmicos é o principal fator relacionado à resistência e diversas carbapenemases já foram descritas como a Klebsiella pneumoniae carbapenemase (KPC) e a New Delhi metalo-beta-lactamases, entre outras(1). A resistência aos carbapenêmicos em Enterobacterales é, na maioria dos casos, mediada por plasmídios, que exercem um importante papel na disseminação do gene, necessitando de práticas de controle de infecção rigorosas.(2)

Os carbapenêmicos, um agente antimicrobiano efetivo, teve seu uso limitado devido a esse novo cenário de emergência das cepas produtoras de carbapenemases. Tanto a KPC quanto a NDM se disseminaram rapidamente a nível mundial e estão geralmente associadas a resistência a outros antimicrobianos.(3)

A primeira descrição da KPC ocorreu nos Estados Unidos, em 1996. Após o relato inicial no Brasil várias publicações tem demonstrado a disseminação em todo o país, inclusive  em bacilos Gram negativos não fermentadores.(4,5) No Hospital Júlia Kubistchek da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG), o primeiro isolamento de Enterobacterales produtora de KPC ocorreu no ano de  2009, tornando-se endêmica na instituição.(6)

Com relação à NDM, foi reportada pela primeira vez no mundo em 2009, em uma Klebsiella pneumoniae originária da Ìndia e isolada em 2008. No Brasil o primeiro relato ocorreu no ano de 2013, em uma cepa de Providencia rettgeri e desde então o gene vem sendo detectado em várias espécies e locais.(7)

A partir de 2009, o Clinical and Laboratory Standards Institute (CLSI) passou a recomendar a pesquisa da enzima KPC em isolados de Enterobacterales com resistência às cefalosporinas de subclasse III e sensibilidade diminuída aos carbapenêmicos e a utilização do teste de triagem que permitisse detectar a inativação do antimicrobiano. Desde então algumas modificações foram realizadas na técnica, tornando possível diferenciar as metalo-beta-lactamases de serino carbapenemases.(8)

Entre as consequências da pandemia da covid-19, com milhões de casos em todo mundo, existe uma grande preocupação com o aumento global da resistência aos antimicrobianos(9).

O objetivo desse estudo foi reportar a emergência de Enterobacterales produtoras de metalo-beta-lactamases no Hospital Júlia Kubitschek (HJK) da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG), um hospital geral que foi direcionado para o atendimento aos pacientes de covid-19, localizado em Belo Horizonte, Brasil. Além disso, foi avaliado se o método fenotípico mCIM eCIM foi eficiente na triagem da produção de carbapenemases.

 

MATERIAIS E MÉTODOS

 

Trata-se de um estudo descritivo de caráter retrospectivo. Foram incluídas 128 cepas de Enterobacterales produtoras de carbapenemases isoladas entre Janeiro de 2021 a Setembro de 2021 em diversas amostras clínicas, conforme tabela 1. Isolados de amostras clínicas diferentes de um mesmo paciente foram excluídos.

No setor de microbiologia do Laboratório do HJK, a identificação das espécies é realizada por meio de testes bioquímicos tradicionais e do sistema semi-automatizado BBL Crystal® (Enteric/Nonfermenter ID System/Becton, Dickinson and Company). As Enterobacterales produtoras de carbapenemases foram triadas de acordo com o documento anual do Clinical and Laboratory Standard Institute (CLSI) do ano corrente:(8) isolados com halo de inibição por disco difusão ≤22 mm para imipenem e meropenem e ≤21 mm para ertapenem foram consideradas suspeitos.

O teste fenotípico para a detecção de carbapenemases mCIM eCIM foi realizado conforme descrito no documento do CLSI.(8) Quando o teste indicou a detecção de metalo-beta-lactamases, as cepas foram enviadas para o Laboratório de Referência da Fundação Ezequiel Dias (FUNED) para realização da confirmação molecular por meio de reação em cadeia da polimerase (PCR) para pesquisa dos genes blaKPC, blaNDM e blaOXA. Para o teste fenotípico positivo para carbapenemases do tipo serino (KPC, OXA, dentre outras), não foi estabelecido na unidade o fluxo de encaminhar para a confirmação molecular, uma vez que, ao longo dos anos, notou-se alta concordância com o teste molecular nesses casos. Ao mesmo tempo, o laboratório de Microbiologia/HJK realizou a determinação da concentração inibitória mínima (CIM) por meio do E-test® para os carbapenêmicos (Biomerieux®) e a microdiluição em caldo para a polimixina (Policimbac®-Probac do Brasil). As amostras resistentes a polimixina também foram enviadas para a FUNED para pesquisa do gene mcr-1 (mobilised colistin resistance).

 

ÉTICA

 

Este trabalho foi aprovado no CEP FHEMIG, CAAE 55250422.1.0000.5119.

 

RESULTADOS

 

Durante o período do estudo foram isoladas 128 cepas produtoras de carbapenemases em diversas Enterobacterales (Tabela 2), sendo que em Janeiro houve a primeira detecção de NDM na unidade. Entre as 128 bactérias produtoras de carbapenemases, 92/128 eram do tipo serino, 32/128 eram NDM e em 1/128 foram detectados os genes blaKPC e blaNDM. Foram excluídas do estudo 3/128 isolados por não haver resultado molecular liberado pela FUNED devido a discrepâncias na identificação da espécie. Como nem todas as cepas classificadas como KPC pelo método fenotípico foram enviadas, o resultado pelo método molecular foi obtido em um total de 54/128 amostras.

 

 

Tabela 1

Amostras clínicas incluídas no estudo

Amostras clínicas Frequência (n) Porcentagem
Aspirado traqueal 32 25,00%
Lavado broncoalveolar 1 0,78%
Escarro 1 0,78%
Ferida sacral 1 0,78%
Fragmento de tecido 3 2,34%
Líquido pleural 1 0,78%
Ponta de cateter 18 14,06%
Sangue 15 11,72%
Swab retal 37 28,91%
Urina 19 14,84%
Total 128 100,00%

 

Tabela 2

Tipos de microrganismos e carbapenemases encontradas

Microrganismo KPC (n) NDM (n) KPC + NDM (n)
Klebsiella pneumoniae 85 14
Proteus mirabilis 11 1
Providencia rettgeri 3
Escherichia coli 1 2
Enterobacter cloacae 2
Serratia marcescens 2 1
Serratia spp. 1
Providencia rustigianii 1
Pantoea agglomerans 1

Legenda: KPC=Klebsiella pneumonia carbapenemase; NDM = New Delhi metalo-beta-lactamases

 

 

 

DISCUSSÃO

 

A pandemia de covid-19 criou condições que favoreceram a disseminação de microrganismos resistentes aos antimicrobianos nos serviços de saúde: aumento no número e no tempo de hospitalização dos pacientes com covid-19; pacientes graves com uso prolongado de dispositivos invasivos e assistência intensiva; redução do número de profissionais de saúde e aumento da carga de trabalho; dificuldades para implementação de medidas de prevenção e controle de infecções; utilização excessiva e empírica de antimicrobianos de amplo espectro, em larga escala, para tratamento de infecções secundárias, fúngicas ou bacterianas.(9) Esse foi justamente o cenário encontrado no HJK, um hospital que foi direcionado para o atendimento a covid-19, com súbito aumento de leitos de terapia intensiva em um curto espaço de tempo.

Conforme observado por outros autores,(10) houve um aumento significativo na prevalência de bactérias produtoras de KPC quando comparado o período anterior a pandemia. Estudos internacionais indicaram que aproximadamente 70% dos pacientes hospitalizados com covid-19 receberam antibióticos, na maior parte de amplo espectro, apesar da falta de evidência de co-infecção por bactérias.(11) No HJK, foram diagnosticados 39 pacientes com Enterobacterales produtoras de KPC em 2019, principalmente em Klebsiella pneumoniae. No período do estudo, foram 92/128 isolados produtores de carbapenemases do tipo serino, provavelmente KPC. Em nosso hospital, antes da pandemia, apenas cepas  KPC tinham sido isoladas. Em 2021 houve a emergência de NDM com a detecção em 32/128 cepas estudadas.

As New Delhi metalo-beta-lactamases (NDMs), com suas 28 variantes já descritas, são uma família de enzimas que disseminou rapidamente pelo mundo, geralmente associada à prognósticos ruins e alta mortalidade.(2) Conforme demostrado na tabela 2, nota-se que, apesar do predomínio de Klebsiella pneumoniae entre os isolados KPC, para a NDM é marcante a emergência em outras espécies como Proteus mirabilis (12/33). A aquisição de genes de resistência nessa espécie, além de outros gêneros como Providencia spp. e Serratia spp., torna-se ainda mais preocupante, uma vez que são bactérias intrinsecamente resistentes às polimixinas, limitando ainda mais o número de antimicrobianos disponíveis para o uso clínico.(2)

Gao et al.(12) relatou a emergência de Klebsiella pneumoniae resistente aos carbapenêmicos (CRKP) e produtoras de KPC-2 e NDM-1. Ensaios de transferência de plasmídios e análises filogenéticas sugeriram que a CRKP KPC2-NDM1 emergiu de uma CRKP progenitora que adquiriu outro plasmídio altamente transferível portando o gene blaNDM-1. Além disso, testes de estabilidade mostraram que esses isolados eram estáveis e tinham capacidade de transmissão entre pacientes.

Esse relato é preocupante uma vez que em nosso estudo foi detectada uma cepa de Proteus mirabilis com teste fenotípico positivo para metalo-beta-lactamases e com a presença dos genes blaKPC e blaNDM, gerando a preocupação de uma possível disseminação na unidade e maior limitação das opções terapêuticas já tão escassas. Dados do Laboratório Central do Estado do Paraná (LACEN-PR) mostram Enterobacterales positivas concomitantemente para blaKPC e blaNDM em até 8% do total de isolados positivos para estes genes.(4) Gao et al.(12) mostrou, por meio de testes de sensibilidade aos antimicrobianos,  que o composto ceftazidime-avibactam, recém introduzido em alguns países para tratamento de bactérias produtoras de KPC, tinham pouco efeito nas cepas que continham os dois genes para KPC e NDM.

A criticidade desse cenário de resistência é agravada pela elevada taxa de resistência a outros antimicrobianos. Geralmente os genes que codificam as carbapenemases estão localizados em plasmídios, que também carregam outros genes de resistência para os aminoglicosídeos e quinolonas.(2)
No entanto, a resistência a outros antimicrobianos não foi avaliada por não ser o objetivo desse estudo.

O teste mCIM eCIM é um método fenotípico desenvolvido para detectar e classificar as carbapenemases entre metalo-beta-lactamases e as do tipo serino (KPC, OXA, dentre outras), baseado na inibição da atividade da enzima pelo agente quelante EDTA (Ácido etilenodiamino tetra-acético). No Setor de Microbiologia do HJK, após a triagem por meio de metodologia de disco difusão, as cepas com sensibilidade diminuída aos carbapenêmicos foram testadas pelo método.  Nesse trabalho, observou-se uma boa concordância entre o método fenotípico e o molecular. Quando foram analisadas as amostras onde houve resultado molecular pela FUNED e o fenotípico (54/128), observou-se a concordância entre 47/54. Entre essas cepas foram 4/54 resultados indeterminados, 1/54 negativo pelo método fenotípico e 2/54 discordantes. Assim, o método mCIM eCIM mostrou-se útil na triagem da produção de carbapenemases, além de possibilitar a classificação rápida do tipo, com a liberação do resultado em 24 horas. Esse dado é importante para orientar a terapia antimicrobiana, uma vez que o  composto ceftazidime-avibactam, recém introduzido na instituição, é uma potente opção terapêutica no tratamento de infecções por KPC.(13)

Entre as espécies incluídas no estudo e que não apresentam resistência intrínseca, foram encontrados 22/99 isolados de Klebsiella pneumoniae resistentes a polimixina, sendo que 15/22 eram KPC e 7/22 NDM. Estudos recentes alertam para o aumento significante da resistência à polimixina em Enterobacterales produtoras de carbapenemases, sugerindo uma forte associação entre a presença de carbapenemases e a diminuição da atividade da polimixina.(2) As cepas que apresentaram resistência foram enviadas para o laboratório de referência da FUNED para pesquisa do gene mcr-1 (mobilised colistin resistance) e todos os isolados foram negativos, mostrando que a resistência está relacionada provavelmente a genes cromossomais.

 

CONCLUSÃO

 

Com a escassez de dados locais torna-se difícil prever o impacto que essa pandemia pode causar no aumento da disseminação de microrganismos resistentes. Assim, é importante descrever a emergência de Enterobacterales produtoras de metalo-beta-lactamases em um Hospital de Referência para covid-19. Além disso, o teste fenotípico mCIM eCIM mostrou-se uma boa ferramenta na triagem da produção e na classificação das carbapenemases na instituição.

 

AGRADECIMENTOS

 

Aos funcionários do Setor de Microbiologia/HJK pelo suporte na condução desse estudo.

 

REFERÊNCIAS

 

  1. Vivas R, Dolabella SS, Barbosa AT, Jain S. Prevalence of Klebsiella pneumoniae carbapenemase and New Delhi metallo-beta-lactamase-positive K. pneumoniae in Sergipe, Brazil, and combination therapy as a potential treatment option. Rev Soc Bras  Med Trop. 2020; 53:e20200064.
  2. Zhang Z, Guo H, Li X, et al. Genetic Diversity and Characteristics of blaNDM-Positive Plasmids in Escherichia coli. Front Microbiol. 2021;12:729952. Published 2021 Nov 16. doi:10.3389/fmicb.2021.729952
  3. Firmo EF, Beltrão EMB, Silva FRF,  Alves LC, Brayner FA, Veras DL, Lopes ACS. Association of blaNDM-1 with blaKPC-2 and aminoglycoside-modifying enzyme genes among Klebsiella pneumoniae, Proteus mirabilis and Serratia marcescens clinical isolates in Brazil. J Glob Antimicrob Res. 2020; 21:255-261.
  4. ANVISA. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Nota Técnica GVIMS/GGTES/ANVISA N°01/2013. Medidas de prevenção e controle de infecções por enterobactérias multiresistentes. Brasília (DF);2013.
  5. ANVISA. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Nota Técnica GVIMS/GGTES/ANVISA N°01/2021. Identificação de Pseudomonas aeruginosa resistente a carbapenêmicos, produtoras de KPC e NDM. Brasília (DF);2021.
  6. Viegas DM, Soares VM. Prevalence or carbapenemase in Enterobacteriaceae with decreased susceptibility to carbapenems isolated in a tertiary referral hospital. J Bras Patol Med Lab. 2018;54(2):95-98.
  7. Tshisevhe VS, Lekalakala MR, Tshuma N, Janse van Rensburg S, Mbelle N. Outbreak os carbapenem-resistant Providencia rettgeri in a tertiary hospital. S Afr Med J. 2016; 107(1):31-33.
  8. CLSI. Clinical and Laboratory Standards Institute. Performance standards for antimicrobial susceptibility testing. M100-Ed31:2021.
  9. ANVISA. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Nota Técnica GVIMS/GGTES/ANVISA N°05/2021. Orientações para prevenção e controle da disseminação de microrganismos multirresistentes em serviços de saúde no contexto da pandemia da covid-19. Brasília (DF);2021.
  10. Dumitru IM, Dumitrascu M, Vlad ND, Cernat RC, Ilie-Serban C, Hangan A, Slujitoru RE, Gherghina A, Mitroi-Maxim C, Curtali L, Carp DS, Dumitrescu A, Mitan R, Lesanu R, Rugina S. Carbapenem-Resistant Klebsiella pneumoniaeAssociated with COVID-19. Antibiotics. 2021; 10(5):103390.
  11. Arteaga-Livias, K., Pinzas-Acosta, K., Perez-Abad, L., Panduro-Correa, V., Rabaan, A., Pecho-Silva, S., & Dámaso-Mata, B. A multidrug-resistant Klebsiella pneumoniae outbreak in a Peruvian hospital: Another threat from the COVID-19 pandemic. Infection Control & Hospital Epidemiol. 2022; 43(2):267-268.
  12. Gao H, Liu Y, Wang R, Wang Q, Jin L, Wang H. The transferability and evolution of NDM-1 and KPC-2 co-producing Klebsiella pneumoniae from clinical settings. EBioMedicine. 2020;51:102599.
  13. Lopes E, Saavedra MJ, Costa E, de Lencastre H, Poirel L, Aires-de-Sousa M. Epidemiology of carbapenemase-producing Klebsiella pneumoniae in northern Portugal: predominance of KPC-2 and OXA-48. J Glob Antimicrob Resist 2020;22:349–53.

 

Correspondência

Valéria Martins Soares

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