A importância da sedimentoscopia em amostras de urina com exame físico-químico negativo

The importance of sedimentoscopy in urine samples with negative physical-chemical examination

Fernanda Kézia de Sousa Silva1
Alexandre de Almeida Monteiro2

 

1 Acadêmica de Biomedicina/ Centro Universitário Christus – Unichristus. Fortaleza, CE, Brasil.

2 Mestre em Patologia pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre / Professor do Curso de Biomedicina – Unichristus. Fortaleza, CE, Brasil.

 

Recebido em 30/07/2020

Aprovado em 02/03/2022

DOI: 10.21877/2448-3877.202202053

 

 

INTRODUÇÃO

 

A medicina laboratorial iniciou-se com análise da urina. Um dos primeiros testes a serem realizados foi a observação da aparência da urina.(1) Nas primeiras descrições, na idade da pedra, a prática de examinar a urina era vista como uma forma de diagnosticar e determinar o tratamento para diversas doenças.(1) Desenhos nas paredes das cavernas dos primeiros povos indicavam algumas doenças e alterações na urina.(1)

O estudo da urina em um laboratório é dividido em três fases: exame físico, químico e análise do sedimento urinário. Em um laboratório de análises clínicas, quando se recebe uma amostra de urina, a primeira análise a ser feita é a físico-química. Os primeiros atributos a serem verificados na análise física é a cor e a turbidez da amostra. Após ser feito o exame físico, é feita a análise bioquímica por meio da fita reagente, e esse tipo de análise é apontada como uma opção rápida e de baixo custo, pois avalia presença ou não de proteína, glicose, nitrito, esterase leucocitária, leucócitos, pH (potencial hidrogeniônico), urobilinogênio e bilirrubina.(2,3)

A doença renal pode ser estudada pela análise do sedimento urinário. Embora não seja possível medir o grau da função renal, a análise se faz necessária para contribuir no diagnóstico clínico.(4,5) A análise do sedimento urinário mostra a distinção na interpretação de doenças renais, sendo um recurso favorável para analisar a aparência morfológica dos componentes contidos na amostra de urina, podendo ser encontradas hemácias, leucócitos, cristais, bactérias, leveduras e cilindros.(4,5)

A análise do sedimento é um dos processos que requer mais recursos na rotina laboratorial. As três etapas da análise de urina são essenciais, porém duas se destacam por serem mais econômicas e de fácil desempenho. No entanto, a microscopia da urina é considerada mais complexa e/ou de alto custo para a sua realização.(6)

Em diversos países, quando se tem uma urina com aspecto físico claro, sem turbidez, com aparência normal e com o exame químico negativo, opta-se por não realizar a sedimentoscopia, sempre seguindo as indicações médicas.(5) A metodologia seguida no Brasil é diferente, uma vez que os laboratórios sempre realizam os três métodos de análise.(5)

Novas linhas de estudos vêm mostrando que a análise do sedimento de urinas negativas é desnecessária, embora sejam estudos limitados pelo baixo número de amostras que são analisadas. Sendo assim, o estudo é relevante e se faz necessário para comprovar que a análise do sedimento urinário é importante para detectar a presença de cristais, leveduras e bactérias que não são detectados pelo exame físico-químico.

Este trabalho visa identificar a existência de elementos clinicamente importantes no sedimento urinário de amostras de urinas com exame físico-químico negativo, como os cristais, as leveduras e as bactérias.

 

MATERIAL E MÉTODOS

 

A pesquisa foi realizada em um laboratório particular de Fortaleza – CE. As amostras são analisadas em um período de até duas horas após a coleta. Todas as amostras foram acondicionadas em caixas térmicas com a temperatura ideal para o transporte e armazenamento das urinas.

A análise das urinas foi realizada seguindo o protocolo validado no laboratório. Todas as amostras foram submetidas ao exame físico, à leitura da fita reativa e à sedimentoscopia, todas realizadas em equipamento de automação total – FUS 2000 (Dirui Industrial Co., Changchun, China). Quando necessário, algumas amostras são revisadas através de sedimentoscopia manual. O preparo das amostras segue as normas de acordo com a ABNT NBR 15268.(7) Para tal, são utilizados tubos plásticos de 12mL, os quais são identificados e, logo após centrifugação de 1.500 RPM por 5 minutos, é desprezado o sobrenadante. O volume restante (cerca de 0,5mL) do sedimento é ressuspendido utilizando um agitador de tubos tipo Vortex.

O laboratório possui critérios para classificação dos elementos, cuja presença ou quantificação foi considerada alterada na sedimentoscopia, considerando os seguintes parâmetros:

  • Raros – 0 a 4 por campo;
  • Poucos – 5 a 10 por campo;
  • Frequentes – 11 a 30 por campo;
  • Numerosos – > 30 por campo.

 

As informações dos sumários de urinas foram planilhadas no programa Microsoft Excel® 2007. Utilizamos também dados demográficos de exames físico-químico e sedimentoscopia dos pacientes.

 

ÉTICA

 

O projeto possui aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Universitário Christus (CAAE 24764619.0.0000.5049) e também obteve o apoio de um laboratório de referência particular de Fortaleza.

 

RESULTADOS

 

Foram extraídos dados referentes a 48.755 sumários de urina, do período de julho a dezembro de 2019, e foi constatado que 9.160 exames (18,79%) não apresentaram alterações na sedimentoscopia, conforme apresentado na Tabela 1.

 

 

Tabela 1 – Números de amostras de urinas sem alterações físico-químicas

  Valor absoluto Valor percentual
Normais 39.595 81,21%
Anormais 9.160 18,79%
TOTAL 48.755 100,00%

 

 

DISCUSSÃO

 

O exame de urina é um dos exames mais importantes para triagem e avaliação do estado geral de saúde dos indivíduos e pode sinalizar alterações renais e/ou hepáticas.(2) A análise da urina na história médica sempre foi conhecida como um ótimo indicador para se avaliar o estado de saúde do paciente, sendo a urina um material de fácil obtenção, sem causar nenhum tipo de dor ou desconforto ao paciente, tornando sua análise um dos exames mais solicitados em ambientes hospitalares.(8) O sumário de urina não é um exame frequentemente solicitado em pacientes que não possuam algum tipo de sinal ou sintoma clínico. Nessa circunstância, o sumário é indicado apenas em pacientes que possuam sintomas como pacientes diabéticos, crianças e grávidas.(6)

Foram estudados dois artigos científicos que realizaram o mesmo tipo de análise que a do presente estudo. Nesses artigos, o número de amostras utilizadas foram bem inferiores ao nosso trabalho, como o de Heggendornn,(9) que analisou cerca de 317 urinas com o objetivo de avaliar a importância da realização da análise microscópica do sedimento urinário frente aos valores normais obtidos nos exames físico-químicos de triagem. Já Costaval(6) utilizou cerca de 10.234 amostras e avaliou a importância da análise do sedimento em amostras de urinas com características físico-químicas normais.

Segundo Heggendornn,(9) todos os resultados apontaram a relevância em se realizar a sedimentoscopia de todas as amostras de urina, mesmo não apresentando nenhum parâmetro positivo na análise físico-química. O resultado que apresentou um maior valor de anormalidade dentre os elementos foi a presença de bactérias. Comparando os dados do estudo de Heggendornn, que obteve 2,02% de microbiota aumentada, nosso estudo encontrou cerca 5,50% das amostras com a presença de bactérias, valores maiores que o do estudo analisado.(10)

No presente estudo, avaliamos os resultados de 39.595 exames de sumários de urinas, todos com a análise físico-química negativa. Do número total de exames, cerca de 5.403 exames obtiveram resultados positivos na sedimentoscopia. De acordo com os resultados obtidos, verificou-se que 13,67% das amostras de urinas das quais acreditava-se que não possuiriam nenhum tipo de anormalidade, na verdade apresentaram, sim, tais características (Tabela 2).

 

 

Tabela 2 – Elementos encontrados na sedimentoscopia de 39.595 urinas sem alterações físico-químicas

  Valor absoluto Valor percentual
Cilindro hialino 03 0,01%
Cilindro granuloso 07 0,02%
Hemácias 20 0,05%
Piócitos 14 0,04%
Bactérias 2.176 5,50%
Leveduras 03 0,01%
Células epiteliais escamosas 125 0,32%
Sais amorfos 1140 2,88%
Cristais de ácido úrico 434 1,10%
Cristais de fosfato de cálcio 10 0,03%
Cristais de fosfato triplo 08 0,02%
Cristais de oxalato de cálcio 1.463 3,69%
TOTAL 5.403 13,67%

 

Os resultados obtidos nos mostraram a presença de muitos cristais no sedimento urinário. Um cristal que foi encontrado com maior frequência foi o oxalato de cálcio, importante achado para a clínica, e que é formado em razão do agrupamento de solutos na urina.(10) Esse cristal pode estar associado à litíase, doença que se dá pela formação de cálculos renais.(11)

Outro achado bastante relevante e de importância clínica foram os cilindros granulosos, encontrados em sete amostras, que podem ter significado clínico ou não. Os grânulos em situação não patológica podem ser originados dos lisossomos excretados pelas células epiteliais tubulares renais durante o metabolismo normal.(10) Em condições patológicas, o cilindro granuloso pode aparecer por conta da desintegração do cilindro celular e de células tubulares, ou agregados de proteínas filtradas pelo glomérulo.(10)

 

CONCLUSÃO

 

A sedimentoscopia, exame frequentemente solicitado pelos médicos, pode trazer um custo maior para os laboratórios. Contudo, tal técnica é necessária para triar possíveis doenças, sendo, portanto, uma etapa indispensável do exame da urina, pois pode mostrar ao clínico que existem elementos anormais, mesmo em amostras com o exame físico-químico negativo.

 

REFERÊNCIAS

  1. Andriolo A, Ballarati CAF, Galoro CAO, Mendes ME, Melo MR, Sumita NM. Recomendações da Sociedade Brasileira de Patologia Clínica/Medicina Laboratorial (SBPC/ML): coleta e preparo da amostra biológica; (2014).
  2. Siqueira LDO, Muccini T, Dall AI, et al. Análise de parâmetros bioquímicos séricos e urinários em atletas de meia maratona. Arquivos Brasileiros de Endocrinologia & Metabologia. 2009; 53(7), 844-852.
  3. Marques AG, Pasternak J, Damascena MDS, França CN, Martino MDV. Desempenho da fita de urina como resultado presuntivo para cultura de urina negativa. Einstein (São Paulo). 2017; 15(1), 34-39.
  4. Poloni JAT. Análise do sedimento urinário para identificação de insuficiência renal aguda e diagnóstico diferencial de necrose tubular aguda e síndrome hepatorrenal em pacientes com doença hepática severa. 2019. [Doctoral dissertation]. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde, Fundação Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre; 2019.
  5. Alves MAR. Diagnóstico de doença renal crônica: avaliação de proteinúria e sedimento urinário. J Bras Nefrol. 2004; 26(3 Suppl 1), 6-8.
  6. da Costaval JA, de Pádua Massote A, Cerqueira CMM, da Costaval AP, Auler A, Martins GJ. Qual o valor da sedimentoscopia em urinas com características físico-químicas normais? J Bras Patol. 2001; 37(4):261-5.
  7. Associação Brasileira de Normas Técnicas. Norma Brasileira 15268. Laboratório Clínico – Requisitos e recomendações para exame de urina. Rio de Janeiro: ABNT; 2005.
  8. Mundt LA, Shanahan K. Exame de Urina e de Fluidos Corporais de Graff. 2ª Edição. Artmed Editora: 2016.
  9. Heggendornn LH, Almeida SN, Cunha GA. Urinálise: a importância da sedimentoscopia em exames físico-químicos normais. Revista Eletrônica de Biologia. 2014. ; (REB). ISSN 1983-7682, 7(4), 431-443.
  10. Strasinger SK, Lorenzo M. Urinálise e fluidos corporais. 5ª ed. São Paulo: Editorial Premier; 2009.
  11. Lopata VJ, Hofelmann SJ, Hauser AB. Análise de dados clínicos e laboratoriais associados à litíase urinária em pacientes de um laboratório de análises clínicas. 2017. Visão Acadêmica, 17(3).

 

 

Correspondência

Alexandre de Almeida Monteiro

João Adolfo Gurgel, 133 – Cocó

Fortaleza – CE, CEP: 60190-180

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