Ceratite micótica por Acremonium spp. – Relato de caso

Mycotic keratitis by Acremonium spp. – Case report

 

Barbara Catarina de Antoni Zoppas1

Jeferson Dedéa2

Claudia Pissaia3

Jorge Alberto Menegasso Vieira3

Lucas Piccoli Conzatti3

Olívia Egger de Souza3

Eduardo Della Giustina4

 

 

1Acadêmico da Universidade de Caxias do Sul – Caxias do Sul-RS, Brasil.
2Farmacêutica pela Universidade de Caxias do Sul – Caxias do Sul-RS, Brasil.
3Médico pela Universidade de Caxias do Sul – Caxias do Sul-RS, Brasil.
4Médico Oftalmologista do Ambulatório Central da Universidade de Caxias do Sul – Caxias do Sul-RS, Brasil.

Instituição: Universidade de Caxias do Sul – Caxias do Sul-RS, Brasil.

Recebido em 19/09/2017

Artigo aprovado em 08/11/2018

DOI: 10.21877/2448-3877.201800622

 

INTRODUÇÃO

Ceratite micótica é uma infecção corneana fúngica de aspecto supurativo e ulcerativo, potencialmente devastadora e de difícil tratamento.(1,2) Mais de sessenta espécies de fungos foram identificadas como agentes de ceratites, dependendo dos locais geográficos.(2) Os principais fungos envolvidos são: Aspergillus spp., Fusarium spp. e Candida spp. Acremonium spp. é um agente incomum de lesões de córnea tendo sido identificado em menos de 3% dos casos de ceratites micóticas.(3)

 

RELATO DE CASO

 

Paciente masculino, 46 anos, agricultor, procurou atendimento oftalmológico no Ambulatório Central da Universidade de Caxias do Sul, com queixas de dor e vermelhidão na região ocular direita após ter sofrido trauma contuso com um galho de árvore, três dias antes de procurar consulta médica. Paciente era portador prévio de um transplante de córnea realizado há oito meses por motivo de leucoma pós-trauma. Ao exame oftalmológico apresentava lesão esbranquiçada, ulcerada no botão doador da córnea, medindo aproximadamente 3 mm de diâmetro. A região mostrava também comprometimento das bordas da córnea, havendo vazamento de humor aquoso. Foi submetido na mesma data à raspagem da lesão para investigação laboratorial quanto à etiologia da úlcera com aspecto infeccioso. A cultura foi realizada num laboratório de análises clínicas de Caxias do Sul. Tendo como suspeita etiologia fúngica, foi injetado na câmara anterior uma dose de 10 microgramas de anfotericina B, realizado recobri­mento conjuntival e sutura corneana associada. Após quatro dias, apresentou deiscência de sutura e novo vazamento de humor aquoso com piora da lesão. Foi submetido a retrans­plante a quente, tendo em vista a degradação do quadro. O paciente recebeu tratamento empírico com fluconazol via oral e anfotericina B tópica. Duas semanas após o transplante, a cultura em ágar-Sabouraud dextrose do material da úlcera e da córnea removida mostrou-se positiva para o fungo Acremonium spp. (Figuras 1 e 2). Neste momento optou-se por substituir o antifúngico sistêmico para cetoconazol e manter o tratamento tópico com anfotericina B. A duração do tratamento foi de dois meses. Seis meses após a cirurgia, o paciente encontrava-se sem sinais de recidiva da lesão.

1Figura 1. Macromorfologia de Acremonium spp.

2

Figura 2. Micromorfologia de Acremonium spp. (40X).

 

DISCUSSÃO

 

A infecção da córnea é uma das principais causas de morbidade ocular e cegueira em todo o mundo.(3) Demonstrou-se que, no sudeste do Brasil, 17% das ceratites infecciosas são causadas por fungos. Fusarium spp. e Asper­gillus spp. foram os fungos mais isolados.(4) Em um estudo sobre as ceratites infecciosas na Ásia, as ceratites fúngicas também representaram 17% dos casos. Os agentes mais prevalentes foram: Fusarium spp., Candida spp. e Aspergillus spp. Dentre os fungos menos frequentes encontra-se o gênero Acremonium spp.(3) Acremonium spp. é um fungo saprófita do solo que comumente contamina o ambiente, sendo causa infrequente de infecções oftalmológicas. Existem três espécies principais de Acremonium comu­mente implicadas em infecções: A. falciforme, A. kiliense e A. recifei.(5)

Houve um aumento significativo dos casos de cerato­micose nas últimas quatro décadas. Este fato pode ser atribuído ao desenvolvimento e ao uso indiscriminado de antibióticos de amplo espectro e de corticoides, uso de lentes de contato, aumento do número de cirurgias corneanas e aos avanços nas técnicas de diagnóstico.(6-13) No que concerne ao modo de infecção, os fungos filamentosos estão associados ao trauma com vegetal, enquanto que os fungos leveduriformes são tipicamente encontrados em pacientes com doença ocular ou sistêmica prévia.(7,8,11,13-16)

As micoses oculares são duas vezes mais encontradas no sexo masculino, o que possivelmente é atribuível à maior exposição ocupacional.(13,14,17) Este fato também foi observado no estudo de Hofling-Lima et al., no qual houve predominância do sexo masculino nas micoses oculares em geral, mas principalmente nas ceratites provocadas por fungos filamentosos nas quais os homens representaram 74,7% dos casos.(18)

Apesar de ser causa incomum de infecções oculares, foram descritos quatro casos de ceratite por Acremonium spp. após Laser in situ keratomileusis (LASIK) realizados na mesma sala de operações, cujas paredes, móveis e ventiladores estavam contaminados por tal fungo.(5)

O presente relato trata de uma infecção secundária a trauma contuso com um galho de árvore, o qual inoculou o fungo Acremonium spp., provocando a ceratite, forma clássica de infecção, porém com um fungo pouco prevalente.

Conforme Read et al., com frequência Acremonium spp. é diagnosticado como Aspergillus spp. ou Candida spp., em exames histopatológicos, devido à sua configuração similar. A diferenciação é importante em face da resistência do Acremonium spp. a vários agentes antimicó­ticos.(2)

Em geral, Aspergillus spp. apresenta hifas com diâmetros mais consistentes, com cadeias em ângulo de 45°, raramente de 90°. Em contraste, Acremonium spp. exibe as duas cadeias com 45 e 90° e diâmetros variados. Espécies de Candida podem ser diferenciadas pela presença de pseudo-hifas e blastoconídios. Para diferenciar Acremonium spp., Fusarium spp. e Paecilomyces spp., é necessário cultivo para identificação através da macro­morfologia e órgãos de reprodução.(2)

Nos relatos descritos, assim como no presente caso, houve piora do quadro infeccioso com o tratamento tópico convencional e corticoides sistêmicos, sendo necessária realização de intervenção cirúrgica para promover maior eficácia aos agentes antifúngicos que não possuem boa penetração na córnea, especialmente quando o epitélio está intacto.(5) A terapia tópica efetiva, com uso de antimi­cro­bianos fortificados, selecionados baseando-se no diagnóstico feito a partir de esfregaço corneano e culturas, é essencial para o manejo de pacientes com ceratite infecciosa.(3)

A terapia direcionada a agentes fúngicos difere quando se trata de fungos filamentosos e leveduriformes. Numa série de casos, anfotericina B foi preferencialmente usada em diagnóstico de infecções por espécies de Candida enquanto que natamicina foi mais comumente usada em infecções causadas por outros agentes.(2) Somente um antifúngico, natamicina, é aprovado pela US Food and Drug Administration para uso oftalmológico tópico, embora vários outros fossem estudados in vitro e em modelos animais ou usados clinicamente em formulações.(19)

O tratamento clínico inadequado ou tardio, muitas vezes implica a necessidade de se realizar transplante de córnea, conforme um estudo que analisou o perfil das ceratites fúngicas em 2002, em cuja população estudada houve necessidade de realização de ceratoplastia penetrante terapêutica em 14 (70%) casos, enquanto que seis (30%) pacientes receberam apenas tratamento clínico.(20) O transplante corneano é indicado com o objetivo de remover o tecido envolvido e preservar a integridade do globo; ainda assim, os fungos podem permanecer nas bordas do tecido corneano ou na câmara anterior levando à recidiva da infecção micótica.(9)

O prognóstico das ceratites micóticas e o grau de comprometimento visual dependem da abordagem terapêutica inicial empírica e da terapêutica definitiva, voltada para o agente etiológico responsável pela lesão. Destaca-se, assim, a importância do conhecimento da etiologia da ceratite, não apenas para diferenciar bactérias de fungos, mas também para delimitar se o agente se trata de fungo filamentoso ou leveduriforme, uma vez que o tratamento de escolha difere entre os dois grupos.

 

CONCLUSÃO

 

O manejo adequado das ceratites fúngicas exige identificação do agente etiológico causador da lesão como forma de orientar o tratamento. Acremonium spp. representa um fungo de baixa incidência, sendo diagnóstico diferencial de outros fungos prevalentes como Aspergillus spp. Torna-se indispensável a realização de cultura do material para a análise macro e micromorfológica para sua correta identificação.

 

Abstract

Fungal keratitis is a fungal corneal infection with a suppurative and usually ulcerative appearance. It represents a potentially devastating and difficult to treat condition. More than 60 fungal species have been reported as keratitis agents, depending on the geographic region. The genus Acremonium spp. is an unusual agent of corneal infections. A male patient, a farmer, who had a corneal transplant, sought care due to pain and redness in the ocular region. It presented ulcerated lesion which progressed even with the initial treatment proposed, and it was necessary to perform a hot corneal retransplantation. The culture of the collected material was positive for the fungus Acremonium spp. There are few reports of Acremonium spp. keratitis in the literature, most of which have occurred after procedures such as Laser in situ keratomileusis (LASIK). Fungal keratitis can be caused by filamentous fungi or yeasts and requires specific treatment guided by microbiological analysis. The prognosis of these lesions and the degree of visual impairment depend on the use of antifungal agents effective against the agent in question.

 

Keywords

Fungal infection; Keratitis; Acremonium

 

REFERÊNCIAS

  1. Iyer SA, Tuli SS, Wagoner RC. Fungal keratitis: emerging trends and treatment outcomes. Eye Contact Lens. 2006;32(6):267-71.
  2. Read RW, Chuck RS, Rao NA, Smith RE. Traumatic Acremonium atrogriseum keratitis following laser-assisted in situ keratomileusis. Arch Ophthalmol. 2000;118(3):418-21.
  3. Fong CF, Tseng CH, Hu FR, Wang IJ, Chen WL, Hou YC. Clinical characteristics of microbial keratitis in a university hospital in Taiwan. Am J Ophthalmol. 2004 Feb;137(2):329-36
  4. Ibrahim MM, Vanini R, Ibrahim FM, Martins Wde P, Carvalho RT, Castro RS, et al. Epidemiology and medical prediction of microbial keratitis in southeast Brazil. Arq Bras Oftalmol. 2011 Jan-Feb; 74(1):7-12.
  5. Alfonso JF, Baamonde MB, Santos MJ, Astudillo A, Fernandez-Vega L. Acremonium fungal infection in 4 patients after laser in situ keratomileusis. J Cataract Refract Surg. 2004 Jan;30(1):262-7.
  6. Foster CS. Fungal keratitis.Infect Dis Clin North Am. 1992 Dec;6(4): 851-7.
  7. Jones DB, Sexton R, Rebell G. Mycotic keratitis in South Florida: a review of thirty-nine cases. Trans Ophthalmol Soc U K. 1970; 89:781-97.
  8. Thygeson P, Okumoto M. Keratomycosis: a preventable disease. Trans Am Acad Ophthalmol Otolaryngol. 1974;78(3):OP433-9.
  9. Chin GN, Hyndiuk RA, Kwasny GP, Schultz RO. Keratomycosis in Wisconsin. Am J Ophthalmol. 1975 Jan;79(1):121-5.
  10. Rosa RH, Jr., Miller D, Alfonso EC. The changing spectrum of fungal keratitis in south Florida. Ophthalmology. 1994;101(6):1005-13.
  11. Kelly LD, Pavan-Langston D, Baker AS. Keratomycosis in a New England referral Center: spectrum of pathogenic organisms and predisposing factors. In: Bialasiewicz AA, Schaal KP, editors. Infectious diseases of the eye. Stoneham: Butterworth-Heinemann; 1994. p. 184-90.
  12. Tanure MA, Cohen EJ, Sudesh S, Rapuano CJ, Laibson PR. Spectrum of fungal keratitis at Wills Eye Hospital, Philadelphia, Pennsylvania. Cornea. 2000;19(3):307-12.
  13. Vieira LA. Ceratite micótica. In: Belfort JR, Kara-José N, editors. Córnea Clínica-cirúrgica. São Paulo: Roca; 1997. p. 189-203.
  14. de Andrade AJ, Vieira LA, Hofling-Lima AL, Yu MC, Gompertz OF, de Freitas D, et al. Laboratorial analysis of fungal keratitis in university service. Arq Bras Oftalmol. 2000;63(1):59-63.
  15. Vieira LA, Belfort JRB, Fischman OF, Scarpi M. Estudo da flora fúngica da conjuntiva normal, da cana-de-açucar e de anemófilos da região canavieira de Santa Rita – Paraíba (Brasil) Arq Bras Oftalmol.. 1989;52(3):63-7.
  16. Griffiths MFP, Clayton YM, Dart JKG. Antifungical sensitivity testing of keratitis isolates at Moorfiels Eye Hospital 1975-1990: therapeutic implications In: Bialasiewicz AA, Schaal KP, editors. Infectious diseases of the eye. Stoneham: Butterworth-Heinemann; 1994. p. 190-4.
  17. Liesegang TJ, Forster RK. Spectrum of microbial keratitis in South Florida. Am J Ophthalmol. 1980 Jul;90(1):38-47.
  18. Hofling-Lima AL, Forseto A, Duprat JP, Andrade A, Souza LB, Godoy P, et al. Laboratory study of the mycotic infectious eye diseases and factors associated with keratitis. Arq Bras Oftalmol. 2005; 68(1):21-7. [Article in Portuguese]
  19. Lalitha P, Shapiro BL, Srinivasan M, Prajna NV, Acharya NR, Fothergill AW, et al. Antimicrobial susceptibility of Fusarium, Aspergillus, and other filamentous fungi isolated from keratitis. Arch Ophthalmol. 2007 Jun;125(6):789-93.
  20. Salera CM, Tanure MA, Lima WT, Campos CM, Trindade FC, Moreira JA. Perfil das ceratites fúngicas no Hospital São Geraldo, Belo Horizonte – MG. Arq Bras Oftalmol. 2002;65(1):9-13.

 

Correspondência

Barbara Catarina de Antoni Zoppas

Universidade de Caxias do Sul    

Rua Francisco Getúlio Vargas, 1130

 95070-560 – Caxias do Sul-RS, Brasil