Análise dos casos notificados de leptospirose no âmbito nacional, estadual e do município de Governador Valadares-MG

Analysis of reported leptospirosis cases at the national, state, and municipal levels in Governador Valadares, MG

 

Thays Valentim Cunha Menezes1, Michel Rodrigues Moreira1

 

1 Universidade Federal de Juiz de Fora, Departamento de Farmácia do Instituto de Ciências da Vida. Governador Valadares, MG, Brasil.

 

Recebido em 03/05/2024

Aprovado em 03/10/2024

DOI: 10.21877/2448-3877.202400179.pt

 

 

 

INTRODUÇÃO

 

A leptospirose humana é uma doença de caráter zoonótico que, na maioria das vezes, ocorre em áreas com climas tropicais, sendo causada por uma espiroqueta do gênero Leptospira, aeróbia, Gram-negativa e que possui mais de 250 sorovares conhecidos.(1-3) Anualmente, esta infecção afeta mais de 1 milhão de pessoas em todo o mundo, com uma taxa de incidência que varia de 10 a 100 casos por 100.000 habitantes e 58.900 óbitos.(3,4) No Brasil, em média, mais de 3.600 pessoas são afetadas todo ano, com uma taxa de incidência de 1,9 casos por 100.000 habitantes e 375 óbitos.(5,6)

A transmissão para os seres humanos ocorre acidentalmente, normalmente quando o microrganismo presente no solo e na água contaminada com urina de animais infectados penetra no hospedeiro através de membranas mucosas ou por meio de soluções de continuidade na pele.(1) Os animais que servem de reservatório são os mamíferos, geralmente ratos, bovinos, cães e também gatos.(7)

O período de incubação varia de 2 a 26 dias, e tanto a transmissão quanto a apresentação clínica parecem variar em diferentes condições ambientais e socioeconômicas. São observadas taxas até dez vezes mais elevadas em países localizados em regiões tropicais e de baixa renda, os quais apresentam uma combinação de fatores como umidade, altas temperaturas e chuvas, além de condições sanitárias precárias.(2,8)

Em humanos, a manifestação clínica inclui desde uma infecção subclínica, doença febril anictérica autolimitada com ou sem meningite, a uma síndrome hemorrágica pulmonar e uma doença grave e potencialmente fatal conhecida como síndrome de Weil, caracterizada por hemorragias, insuficiência renal e icterícia, associada a uma elevada taxa de mortalidade.(1,4,9) Entretanto, devido aos seus sintomas não específicos, como febre, dor de cabeça e mialgia, que imitam outras doenças mais conhecidas, a leptospirose tem sido frequentemente subdiagnosticada e subnotificada, sendo muitas vezes caracterizada como dengue, Chikungunya e até mesmo febre de origem desconhecida. Outros sintomas como náusea, vômitos, dor abdominal e diarreia são frequentemente associados a infecções do trato gastrointestinal.(8-10)

Surtos de leptospirose estão, normalmente, relacionados com enchentes, visto que os seres humanos ficam mais próximos de águas possivelmente contaminadas,(4) e algumas ocupações podem facilitar o acometimento por esta doença, como indivíduos que desempenham atividades de limpeza e de desentupimento de esgotos, garis, catadores de recicláveis, agricultores e pescadores.(6)

Embora potencialmente letal, seu impacto na saúde da população ainda é subestimado. No plano político e midiático a doença tem pouca ou nenhuma visibilidade, o que a torna marginalizada e desconhecida pelo público geral. Em virtude de sua estreita relação com a pobreza, do desinteresse público pela sua resolução e a eventual necessidade de custosos tratamentos permanentes ou de longa duração após a infecção, foi classificada na literatura internacional como Doença Tropical Negligenciada, classificação referente a doenças prevalentes em populações de áreas pobres, que não detêm condições econômicas e de infraestrutura para mobilizar o investimento nas enfermidades de que convalescem e não despertam o interesse de grandes indústrias farmacêuticas ou mesmo de seus governantes para produção de medicamentos e vacinas.(11)

Nenhuma vacina está disponível, logo, a prevenção está diretamente ligada a medidas de controle sanitário, as quais podem ser difíceis de implementar, sobretudo em países em desenvolvimento.(12)

A notificação compulsória da leptospirose deve ser realizada de forma obrigatória pelos profissionais de saúde ou responsáveis pelos serviços de saúde públicos ou privados que prestam assistência ao paciente. A avaliação dos dados disponíveis no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) permite a realização do diagnóstico dinâmico da ocorrência de um evento na população, podendo fornecer subsídios para explicações causais dos agravos de notificação compulsória, além de vir a indicar riscos aos quais as pessoas estão sujeitas, contribuindo, assim, para a identificação da realidade epidemiológica de determinada área geográfica. O seu uso sistemático, de forma descentralizada, contribui para a democratização da informação, permitindo que profissionais de saúde e pesquisadores tenham acesso à informação e a tornem disponível para a comunidade. É, portanto, um instrumento relevante para auxiliar o planejamento da saúde, definir prioridades de intervenção, além de permitir que seja avaliado o impacto das intervenções.(13)

O objetivo deste trabalho foi avaliar a ocorrência de casos de leptospirose no âmbito nacional, no estado de Minas Gerais e no município de Governador Valadares, a partir de dados obtidos do SINAN, a fim de realizar um diagnóstico dinâmico desta infecção nas três esferas.

 

MATERIAL E MÉTODOS

 

Foi realizado um estudo observacional, retrospectivo, a partir de dados secundários obtidos do SINAN, disponível na plataforma eletrônica do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS), que pode ser acessado por meio do endereço eletrônico https://datasus.saude.gov.br/acesso-a-informacao/doencas-e-agravos-de-notificacao-de-2007-em-diante-sinan/, com o intuito de obter informações do período de janeiro de 2007 a dezembro de 2020. Foi avaliada a ocorrência de leptospirose no âmbito nacional e do estado de Minas Gerais (MG) e os dados obtidos foram comparados com os do município de Governador Valadares (GV), considerando faixa etária, raça, sexo, escolaridade, casos em gestantes, área e ambiente de ocorrência, período do ano de maior frequência, critério diagnóstico e evolução da doença. GV possui uma unidade territorial de 2.342,376 km2, população de 257.172 habitantes, de acordo com o Censo de 2022 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e Índice de Desenvolvimento Humano Municipal – 2010 (IDHM 2010) de 0,727.

Neste projeto, os objetos de pesquisa foram dados públicos, obtidos através de consulta realizada à plataforma SINAN, de forma remota. Não houve contato entre pesquisadores e pacientes, não foi solicitada a coleta de nenhum tipo de material biológico de pacientes e não houve identificação dos mesmos.

Foram calculadas as taxas para cada um dos dados encontrados, as quais foram comparadas por meio do teste de inferência para taxa de incidência através do software BioEstat 5.3. A significância estatística foi definida por um valor de p ≤ 0,05 em relação a GV.

 

RESULTADOS

 

No período avaliado foram observados 50.912 casos de leptospirose em todo o país, sendo 1.876 (3,7%) registrados no estado de MG e 33 (0,064%) no município de GV. A maioria dos casos ocorridos no Brasil (BR) envolveu indivíduos com faixa etária entre 20 a 39 anos (40,2%). Já em MG, a faixa etária mais afetada foi de 40 a 59 anos (38,2%) e em GV, assim como no BR, a faixa dos 20 a 39 anos (45,5%) foi a que apresentou maior ocorrência de casos.

O sexo masculino foi o mais afetado nas três esferas, envolvendo 79,9%, 83,0% e 87,9% dos casos no país, em MG e em GV, respectivamente. A raça branca foi a mais atingida no BR (45,9%), assim como em MG (46,9%). Já em GV a raça mais afetada foi a parda (42,4%).

Quando analisados os casos ocorridos de acordo com a escolaridade foi possível observar que a maioria deles, nas três esferas, afetaram indivíduos que possuíam da 5ª à 8ª série incompletas. Entretanto, é importante destacar a quantidade elevada de indivíduos que não tiveram nem a escolaridade, nem a raça definida, sendo identificados nas tabelas do SINAN como “Ignorado/Branco”, com taxa significativamente mais elevada em GV para a escolaridade (Tabela 1).

Foram registrados 282 casos de leptospirose em gestantes no BR, correspondendo a 0,6% do total de casos notificados. A maioria deles no segundo semestre de gestação. Em MG foram registrados 7 casos, representando 0,4% do total do estado, também predominantemente no segundo semestre de gestação. Entretanto nenhum caso foi contabilizado em GV.

Na maioria dos casos de leptospirose a infecção se deu no perímetro urbano no BR (54,7%), MG (43,8%) e GV (60,6%) e o ambiente domiciliar foi o local onde 40,5%, 34,7% e 63,6% dos indivíduos foram infectados nas três esferas, respectivamente, com taxa significativamente mais alta em GV (Tabela 2).

A maioria dos casos ocorreu no primeiro trimestre do ano nas três esferas, com destaque para o mês de janeiro, que apresentou o maior número de casos registrados no BR (14,0%), MG (20,3%) e GV (42,4%).

O critério mais usado para confirmação do diagnóstico foi o clínico-laboratorial em todas as esferas, correspondendo a 86,4% dos casos no BR, 89,4% em MG e 84,8% em GV (Tabela 3).

A maioria dos indivíduos evoluiu para a cura em todas as esferas, entretanto, um número considerável de indivíduos evoluiu para o óbito devido ao agravo da doença, sendo 8,9% no BR, 10,7% em MG e 18,2% em GV (Tabela 4).

 

Tabela 1

Dados demográficos dos indivíduos com leptospirose no período de janeiro de 2007 a dezembro de 2020.

Dados demográficos GV (n/%) MG (n/%) BR (n/%)
Raça      
Ignorado/Branco 11 (33,3%) 248 (13,2%) 5.621 (11%)
Branca 8 (24,2%) 879 (46,9%) 23.350 (45,9%)
Preta 133 (7,1%) 2.822 (5,5%)
Amarela 10 (0,5%) 322 (0,6%)
Parda 14 (42,4%) 603 (32,1%) 18.646 (36,4%)
Indígena 3 (0,2%) 151 (0,3%)
Total 33 1.876 50.912
Sexo      
Ignorado/Branco 4 (0,007%)
Masculino 29 (87,9%) 1.558 (83%) 40.695 (79,9%)
Feminino 4 (12,1%) 318 (17%) 10.213 (20,1%)
Total 33 1.876 50.912
Escolaridade      
Ignorado/Branco 28 (84.8%) 913 (48,7%)* 18.283 (35,9%)*
Analfabeto 6 (0,3%) 779 (1,5%)
1ª à 4ª série incompleta do Ensino Fundamental 144 (7,7%) 4.951 (9,7%)
4ª série completa do Ensino Fundamental 114 (6,1%) 3.044 (6%)
5ª à 8ª série incompleta 2 (6,1%) 200 (10,7%) 8.264 (16,2%)
Ensino Fundamental completo 2 (6,1%) 102 (5,4%) 3.657 (7,1%)
Ensino médio incompleto 1 (3%) 123 (6,6%) 3.528 (6,9%)
Ensino médio completo 191 (10,2%) 5.821 (11,4%)*
Educação superior incompleta 21 (1,1%) 664 (1,3%)
Educação superior completa 47 (2,5%) 1.004 (2%)
Não se aplica 15 (0,8%) 917 (1,8%)
Total 33 1.876 50.912
Faixa Etária      
Ignorado/Branco 1 (0,1%) 12 (0,02%)
<1 Ano 6 (0,3%) 293 (0,6%)
1-4 anos 2 (0,1%) 259 (0,5%)
5-9 anos 1 (3%) 23 (1,2%) 1.204 (2,4%)
10-14 anos 3 (9,1%) 52 (2,8%) 2.848 (5,6%)
15-19 anos 115 (6,1%) 4.704 (9,2%)
20-39 anos 15 (45,5%) 715 (38,1%) 20.484 (40,2%)
40-59 anos 11 (33,3%) 717 (38,2%) 16.485 (32,4%)
60-64 anos 100 (5,3%) 2.055 (4%)
65-69 anos 67 (3,6%) 1.251 (2,5%)
70-79 anos 2 (6%) 67 (3,6%) 1.111 (2,2%)
80 e + 1 (3%) 11 (0,6%) 206 (0,4%)
Total 33 1.876 50.912

*p ≤ 0,05 em relação a GV.

Tabela 2

Área e ambiente de ocorrência de leptospirose no período de janeiro de 2007 a dezembro de 2020.

  GV (n/%) MG (n/%) BR (n/%)
Área de ocorrência      
Ignorado/Branco 5 (15,2%) 371 (19,8%) 10.159 (20%)
Urbana 20 (60,6%) 821 (43,8%) 27.851 (54,7%)
Rural 7 (21%) 603 (32,1%) 11.190 (22%)
Periurbana 1 (3%) 81 (4,3%) 1.712 (3,4%)
Total 33 1.876 50.912
Ambiente de ocorrência      
Ignorado/Branco 6 (18,2%) 536 (28,6%) 14.527 (28,5%)
Domiciliar 21 (63,6%) 651 (34,7%)* 20.633 (40,5%)*
Trabalho 3 (9,1%) 407 (21,7%) 9.133 (17,9%)
Lazer 2 (6,1%) 148 (7,9%) 3.378 (6,6%)
Outro 1 (3%) 134 (7,1%) 3.241 (6,4%)
Total 33 1.876 50.912

*p ≤ 0,05 em relação a GV.

Tabela 3

Critério de confirmação dos casos de leptospirose no período de janeiro de 2007 a dezembro de 2020.

Critério de confirmação GV (n/%) MG (n/%) BR (n/%)
Ignorado/Branco 42 (2,2%) 577 (1,1%)
Clínico-laboratorial 28 (84,8%) 1.678 (89,4%) 43.977 (86,4%)
Clínico-epidemiológico 5 (15,2%) 156 (8,3%) 6.358 (12,5%)
Total 33 1.876 50.912

Tabela 4

Evolução dos casos de leptospirose no período de janeiro de 2007 a dezembro de 2020.

Evolução GV (n/%) MG (n/%) BR (n/%)
Ignorado/Branco 122 (6,5%) 3.819 (7,5%)
Cura 27 (81,8%) 1.524 (81,2%) 42.131 (82,8%)
Óbito pelo agravo notificado 6 (18,2%) 201 (10,7%) 4.531 (8,9%)
Óbito por outra causa 29 (1,5%) 431 (0,8%)
Total 33 1.876 50.912

 

DISCUSSÃO

 

A leptospirose é uma zoonose de alta incidência no Brasil, sendo um importante problema de saúde pública, e o município de GV, em função do histórico de enchentes frequentes, pode apresentar um risco mais elevado de desenvolvimento desta doença em seus habitantes. Neste estudo, as faixas etárias mais afetadas pela leptospirose, nas três esferas, corroboram com os dados do Ministério da Saúde, os quais apontam para uma ocorrência mais comum desta doença em pessoas na faixa etária produtiva, ou seja, dos 20 aos 49 anos.(14)

No estudo de Notobroto et al.,(7) realizado na Indonésia, a maioria dos casos positivos para leptospirose envolveu indivíduos com idade entre 41 e 60 anos, predominantemente do sexo masculino, correspondendo esse segundo dado a 80% do total de casos, o que se justifica, visto que a maior parte da população masculina, na faixa etária em torno dos 40 anos, trabalha como agricultores, criadores de gado ou como garimpeiros de areia em rios.(7)  No presente estudo pode-se observar que uma taxa mais elevada desta infecção afetou o público masculino, nas três esferas avaliadas.  Martins e Spink(11) também concluíram que os homens (78,6%) são mais afetados pela leptospirose do que as mulheres (21,3%) ao analisarem os casos de leptospirose no BR de 2007 a 2015. No estudo de Gonçalves et al.,(15) realizado em Belém-PA, no período de 2007 a 2013, a maior parte dos infectados também era composta de indivíduos do sexo masculino, 68,9%, fato este que, segundo os autores, pode ter envolvimento com o maior grau de exposição dos homens a fatores de risco, como permanecer mais tempo fora do domicílio, desenvolver atividades ocupacionais insalubres em trabalhos informais que são de baixa qualificação, nas ruas ou feiras livres, em situações que facilitam a ocorrência da infecção.

Neste estudo, a raça branca foi a mais acometida pela leptospirose no BR e em MG em 45,9% e 46,9% dos casos, respectivamente, assim como no trabalho de Martins e Spink,(11) que mostrou que 46% dos infectados também se autodeclaravam brancos. Em GV, os indivíduos mais afetados foram os que se autodeclaram pardos. De acordo com dados obtidos do portal Cidades do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a população de GV é predominantemente parda, o que pode justificar as taxas mais elevadas de leptospirose nesse grupo. No estudo de Oliveira et al.,(16) uma pesquisa epidemiológica dos casos de leptospirose no BR, no período de 2010 a 2019, constatou maior número de casos em pacientes com a etnia/cor parda (38,3%) e branca (45,0%). Já no estudo de Araújo Filho et al.,(17) realizado no Pará entre 2012 e 2017, pacientes da cor parda foram os mais afetados pela infecção (79,7%), seguidos por brancos (7,8%), pretos (3,9%) e outras cores de pele (8,6%).

Com relação à escolaridade, no âmbito das três esferas, foi possível observar que a grande maioria dos afetados são pessoas com a 5ª a 8ª série do ensino fundamental incompletas, ou seja, grande parte dos casos pode ter relação com o baixo nível de escolaridade, fato que implica menor entendimento a respeito dos riscos relacionados com a infecção, disseminação e consequências desta doença.(7,12) Rodrigues(18) realizou uma abordagem quantitativa sobre os casos confirmados de leptospirose no estado do Acre para o ano de 2017 e mostrou que a maioria dos infectados apresentava ensino fundamental incompleto (35,9%). Além disso, foi observado que indivíduos com ensino superior incompleto ou completo apresentaram apenas 2% dos casos notificados. Em trabalho semelhante a este, Oliveira et al.(16) mostraram maior frequência de leptospirose em indivíduos que tinham escolaridade da 1ª à 4ª série incompleta do ensino fundamental (15,8%) e ensino médio completo (12,2%), ao passo que entre os indivíduos com ensino superior incompleto (1,41%) a frequência foi menor.

A infecção por leptospirose na gestação está relacionada com aumento da morbidade e mortalidade tanto para a gestante quanto para o feto.(5) No presente trabalho foram observados casos de leptospirose em gestantes apenas no BR e em MG, predominantemente no segundo semestre de gestação.

Neste estudo, a maioria dos casos ocorreu em áreas urbanas, as quais apresentam diversos problemas que podem envolver a saúde da população, como deficiência de saneamento básico e acúmulo de lixo, o que favorece o crescimento da população de animais que são vetores desta doença e o contato do ser humano com o agente causador, muitas vezes disseminado por meio de águas de enchentes.(7,19,20)

A ocorrência de leptospirose está intimamente ligada a fatores ambientais que afetam tanto a sobrevivência da bactéria no ambiente quanto a exposição humana.(4) A doença é mais comumente adquirida nas épocas chuvosas com inundação, situação na qual a urina dos ratos presentes nos esgotos e nos bueiros mistura-se à enxurrada e à lama proveniente das enchentes.(21)

As más condições sanitárias do domicílio, inclusive com fonte aberta de eliminação de águas residuais, com lixo e ratos ao redor das casas, também estão relacionadas com aumento na incidência de leptospirose, assim como com uma elevada densidade domiciliar de moradores.(7) No presente trabalho o ambiente domiciliar foi o local onde ocorreu o maior número infecções, no âmbito das três esferas, com taxa significativamente mais alta em GV, possivelmente pelas frequentes inundações que ocorrem no município durante o período mais chuvoso do ano.(22)

Coelho et al.(23) realizaram um estudo na Região Metropolitana da Baixada Santista (SP) e mostraram que, entre os ambientes prováveis de infecção, o domiciliar foi o que mais se destacou (55,83%) e que populações com piores condições socioeconômicas, condições precárias de moradias e alta vulnerabilidade às enchentes em momentos chuvosos apresentam maiores riscos de infecção.(23) No trabalho de Lima et al.,(24) realizado em Belém-PA, de janeiro de 2006 a dezembro de 2011, o ambiente domiciliar também foi o principal local de infecção, representando 45,1% do total de casos.

A maioria dos casos de leptospirose ocorreu no primeiro trimestre do ano nas três esferas, predominantemente no mês de janeiro. Em GV este fato pode ser justificado pela maior ocorrência de chuvas e alagamentos entre os meses de outubro e março.(22) No trabalho de Guimarães et al.,(21) foi possível constatar que, na cidade do Rio de Janeiro, as chuvas estão concentradas entre os meses de dezembro a março e acabam afetando regiões que apresentam dificuldade na drenagem de água, o que gera inundações e facilita a disseminação da bactéria causadora da leptospirose.(21)

Todavia, o número de casos pode variar conforme o período chuvoso de cada região. A estação chuvosa, sobretudo em regiões de clima quente, causa picos da doença porque favorece a permanência do agente causador da leptospirose no ambiente, evitando sua dessecação.(19) Além disso, o clima quente está diretamente relacionado com um aumento da exposição dos indivíduos a atividades que envolvem o contato com água, a qual pode estar contaminada com urina de animais infectados.(4)

O diagnóstico clínico da leptospirose envolve um processo analítico de detecção da doença por meio da coleta de informações epidemiológicas e avaliação clínica e laboratorial do paciente. A avaliação laboratorial constitui um recurso diagnóstico complementar, ou seja, de apoio, que confirma ou não uma suspeita clínica. Neste trabalho, o critério clínico-laboratorial foi o mais usado para a confirmação dos casos de leptospirose, no BR, em MG e em GV.  Os exames sorológicos são os métodos de escolha para o diagnóstico da leptospirose e, dentre eles, os mais usados são ELISA-IgM e a microaglutinação (MAT). Esses exames permitem a diferenciação da fase precoce da leptospirose em relação a outras doenças que podem conter sintomas semelhantes, como a dengue, influenza (síndrome gripal), malária, riquetsioses, entre outras.  Também auxilia no diagnóstico da fase tardia da leptospirose, que pode ter sintomas clínicos semelhantes aos das hepatites virais agudas, da dengue hemorrágica, da hantavirose, febre amarela, malária grave, febre tifoide, endocardite, riquetsioses, doença de Chagas aguda, pneumonias, pielonefrite aguda, apendicite aguda e na sepse.(14) No estudo de Gonçalves et al.,(15) a confirmação da infecção por leptospirose foi na maioria das vezes clínico-laboratorial (83,8%), sendo clínico-epidemiológica em apenas 14,5% dos casos. Oliveira et al.(16) descrevem situação semelhante em que 86,8% dos casos foram confirmados por critérios clínico-laboratoriais e 12,0% por critérios clínico-epidemiológicos.

Neste trabalho, a maioria dos indivíduos com leptospirose evoluiu para a cura, entretanto foi possível observar um número significativo de óbitos pelo agravo notificado em todas as esferas, o que pode ser decorrente de um diagnóstico equivocado de outra doença. Isso pode ter ocorrido porque a leptospirose apresenta sinais e sintomas semelhantes aos de outras doenças, conforme descrito anteriormente, exigindo um aperfeiçoamento das formas de monitoramento e de diagnóstico.(11) No estudo de Araújo Filho et al.,(17) 73,3% dos pacientes evoluíram para a cura e 11,5% para o óbito. No estudo clínico-epidemiológico de Calado et al.,(25) os casos notificados de leptospirose na Região Norte do Brasil apresentaram um aumento no índice de cura de 89,5% em 2012 para 93,4% em 2015 ao passo que o percentual de óbitos pelo agravo notificado diminuiu de 4,5% para 2,6% no mesmo período, indicando uma possível melhora no manejo da doença.

Este trabalho apresenta algumas limitações, como a utilização de dados secundários de notificação. Pode-se perceber que o sistema de notificação da doença ainda é falho, havendo subnotificação de casos e um grande número de informações insuficientes ou ignoradas, mostrando a necessidade de melhorias.

 

CONCLUSÃO

 

Neste estudo foi possível observar, em todas as esferas avaliadas, que a leptospirose é uma doença frequente, afeta uma população predominantemente em idade produtiva, do sexo masculino e com baixa escolaridade. A maioria dos casos ocorreu em áreas urbanas, no ambiente domiciliar e sobretudo no período de maior ocorrência de chuvas e inundações. O critério clínico-laboratorial foi o mais adotado para a confirmação dos casos, que, em sua maioria, evoluíram para a cura.

O conhecimento gerado por meio deste trabalho aponta para a necessidade de investimento em políticas públicas que promovam melhores condições sanitárias para a população, melhor drenagem e manejo das águas pluviais, com redução das inundações nos períodos chuvosos, e a informação da população a respeito de medidas preventivas e de controle desta doença.

Este estudo evidenciou, também, a necessidade de capacitações profissionais voltadas para o preenchimento adequado e completo das fichas de notificação do SINAN, com o objetivo de reduzir os casos de subnotificação e o grande número de informações insuficientes ou ignoradas.

 

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Correspondência

Michel Rodrigues Moreira

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