Caracterização da população de homens transgêneros no Rio Grande do Norte e sua relação com o exame de Papanicolaou
Characterization of the Transgender Male Population in Rio Grande do Norte and Its Relationship with the Pap Smear
Breno Figueiredo Souza1, Ermeton Duarte do Nascimento2
1 Universidade Federal do Rio Grande do Norte – Estudante do Curso de Biomedicina. Natal, RN, Brasil.
2 Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Orientador – Biomédico, Professor Associado da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Biociências. Natal, RN, Brasil.
Recebido em 01/07/2024
Aprovado em 18/07/2024
DOI: 10.21877/2448-3877.202400190.pt
INTRODUÇÃO
A transexualidade é um fenômeno complexo que transcende definições médicas e biológicas, abrangendo questões culturais e sociais. Pessoas transexuais são aquelas que, em contextos culturais, conflituam com o gênero atribuído ao nascimento, buscando modificá-lo de diversas formas, não apenas através de intervenções cirúrgicas ou químicas. Esta experiência diversa e multifacetada envolve questões de identidade, autenticidade e autodeterminação, com expressões de gênero variadas.(1)
Historicamente, a transexualidade sempre esteve associada a modificações corporais. Durante a segunda metade do século XX, ocorreu o crescimento exponencial das tecnologias em saúde, em especial aquelas com a finalidade de produzir modificações corporais, que eram utilizadas inicialmente pelos soldados que voltavam mutilados das guerras, mas que também inspiraram mulheres lésbicas masculinizadas, conhecidas como butches, e homens trans. Isto se mostrou importante para a adesão dos homens trans às novas tecnologias de modificações corporais, possibilitando a construção do corpo e as performances de gênero almejadas por eles.(2)
A população transexual frequentemente encontra barreiras significativas para o acesso aos cuidados de saúde, em razão , sobretudo, do estigma e da discriminação por parte de profissionais da área, bem como pela falta de serviços especializados e pelos altos custos financeiros associados ao processo de transição de gênero. Além disso, a falta de capacitação especializada daqueles profissionais, resultante de uma cultura negacionista à existência dessas pessoas, pode resultar em lacunas na prestação de cuidados adequados e na falta de reconhecimento das necessidades específicas da população trans.(3)
É vital reconhecer a identidade de gênero dos homens trans e respeitar sua autodeterminação. Eles são pessoas designadas como mulheres ao nascer, mas que se identificam no espectro de gênero masculino. O uso de testosterona e procedimentos cirúrgicos, como a reconstrução torácica, são formas pelas quais alguns homens trans afirmam sua identidade de gênero.(4) No contexto de câncer do colo do útero, homens trans que não passaram por histerectomia continuam em risco e requerem exames de rastreamento. No entanto, a falta de conscientização e preparo dos profissionais de saúde, juntamente com o desconforto e a ansiedade desses pacientes durante o procedimento, resultam em baixa adesão ao exame. É crucial que esses serviços estejam preparados para atender às necessidades específicas dos homens trans, garantindo acesso igualitário aos cuidados de saúde.(5)
Vale salientar que o câncer do colo do útero ou câncer cervical, é uma condição complexa e multifacetada que tem como principal fator de predisposição a infecção persistente pelo Papilomavírus Humano (HPV). O HPV é um vírus que, comumente, é transmitido por via sexual, e sua presença no organismo pode levar ao desenvolvimento de lesões pré-cancerosas e ao câncer cervical. A infecção pelo HPV geralmente ocorre através de microlesões no epitélio da ectocérvice, a parte externa do colo do útero voltada para o canal vaginal. O vírus tem a capacidade de invadir as células basais do epitélio, sobretudo na junção escamo-colunar (junção entre os dois epitélios cervicais: o colunar simples e o escamoso estratificado), onde se replica, liberando seu material genético, o DNA. Esse processo de replicação viral pode desencadear uma resposta celular anormal, levando a uma multiplicação excessiva e desordenada das células epiteliais.(6)
Segundo o Relatório Anual de 2023 do Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva – INCA,(7) no Brasil, excluídos os tumores de pele não melanoma, o câncer do colo do útero é o terceiro tipo de câncer mais incidente entre mulheres cisgênero. Para cada ano do triênio 2023-2025, são estimados 17.010 casos novos. Quando se considera apenas as regiões Norte e Nordeste, o câncer do colo do útero é o segundo mais incidente. Foi estimado, ainda, que para este triênio (2023-2025), no Rio Grande do Norte, haja 280 casos novos. Nesse contexto, em 2021, segundo este relatório, a taxa de mortalidade por câncer de colo do útero no Brasil foi de 4,51 óbitos/100 mil mulheres, enquanto, na Região Nordeste foi mais elevada, com 5,61 óbitos/100 mil mulheres cisgênero.
É importante apontar que todos os dados relacionados ao câncer de colo do útero, disponibilizados pelo INCA,(7) se referem apenas a mulheres cisgênero, e não a pessoas com colo do útero. Desta forma, foram excluídos desses dados os homens trans, o que pode ser justificado pela falta de programas de saúde direcionados a esse público e pela baixa adesão ao exame de rastreio, resultantes das diversas barreiras já citadas, que leva à consequente subnotificação de casos de câncer cervical dessa população. É importante destacar que ainda não há dados sobre o tema no estado do RN. Considerando a escassez desses registros, o presente trabalho tem como objetivo a caracterização clínico-laboratorial dos homens transexuais atendidos no estado do Rio Grande do Norte, com foco no exame de Papanicolaou e a análise estatística das informações coletadas.
MATERIAIS E MÉTODOS
Trata-se de um estudo de coorte baseado em abordagem quantitativa e qualitativa da análise dos prontuários de homens transexuais, atendidos nos últimos quatro anos, no Instituto de Medicina Tropical – IMT Clínico do RN, mais especificamente no Ambulatório Transexual e Travesti de Natal (conhecido como Ambulatório TT e associado ao Hospital Giselda Trigueiro – HGT), que oferece atendimento multidisciplinar e exclusivo pelo Sistema Único de Saúde – SUS, a esta população. Para isto, foi realizada a análise dos prontuários e o histórico de rastreio de câncer do colo uterino desses pacientes. Em cada prontuário foram avaliados: 1) idade; 2) ocupação; 3) estado civil; 4) residência; 5) naturalidade; 6) orientação sexual; 7) prática de hormonioterapia; 8) histórico de infecção sexualmente transmissível – IST; 9) realização de mastectomia; 10) regularidade da realização do exame de Papanicolaou; e 11) o resultado do último exame. Vale ressaltar que nenhum dado de identificação do paciente foi utilizado ou divulgado durante este trabalho e teve a autorização dada pelo Núcleo de Educação Permanente do HGT, para realização da atividade (Anexo 1) e o acesso ao material documental disponível, com fundamento na Resolução n.º 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, especificamente no Art.1º, Parágrafo único, Inciso V.(8)
Nesta resolução, abordam-se as normas para as pesquisas que utilizam dados obtidos diretamente com os participantes ou de informações identificáveis ou que possam acarretar riscos maiores do que os existentes na vida cotidiana. Nesta Resolução, o parágrafo único informa, no inciso V, que não será registrada, nem avaliada, pelo sistema CEP/CONEP “V – pesquisa com bancos de dados, cujas informações são agregadas, sem possibilidade de identificação individual.”
A análise dos dados coletados foi realizada por meio do software estatístico IBM SPSS Statistics® 20.0.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Foram analisados ao todo 80 prontuários, do período de fevereiro de 2020 a março de 2024, representando o total de homens transexuais acompanhados pela equipe multiprofissional do Ambulatório TT nesse período, no estado do Rio Grande do Norte. Observou-se uma variação de idade desses pacientes entre 9 e 55 anos, sendo a maioria entre 20 e 29 anos (62,5%) (Figura 1). Não há na literatura especializada nenhuma explicação para a maior prevalência dessa faixa etária entre os pacientes atendidos no Ambulatório TT de Natal. Entretanto, baseado nas informações dos prontuários, supõe-se que o principal motivo seja porque indivíduos dessas gerações se preocupam mais com a saúde ou buscam por alterações corporais por meio da hormonioterapia. Porém, são necessárias mais pesquisas para um maior embasamento e conclusão.
Figura 1
Faixa etária dos homens trans atendidos
Nota: As interrupções na sequência das faixas etárias referem-se à inexistência de pacientes atendidos nos grupos de 40 a 43 anos, de 50 a 54 anos e 57 anos ou mais, durante o período analisado, motivo pelo qual tais dados não foram incluídos na figura.
Ao realizar a análise cruzada dos dados referentes à ocupação exercida e à idade da população atendida, foi possível aferir que as ocupações mais frequentes apontaram para estudantes (31,2%) e desempregados (12,5%) (Tabela 1). Cinco pessoas optaram por não informar suas ocupações e 29 disseram desempenhar outros cargos, como de advogado, funcionário público, auxiliar de cozinha, auxiliar de serviços gerais, barman, churrasqueiro, funcionário de fast food, funcionário de supermercado, motorista de carro de passeio, professor, telemarketing, vigilante, vendedor, entre outros. Foi relatado também que a maioria dos homens transgêneros atendidos residiam na capital, Natal (53,75%), seguindo por Parnamirim (22,5%), totalizando 17 municípios no estado (Tabela 2).
O fato de a ocupação da maioria dos homens transexuais da pesquisa ser estudante ou desempregado pode estar associado ao preconceito enraizado na população brasileira, o que dificulta a inserção dessas pessoas no mercado de trabalho. Esta afirmação pode ser corroborada por diversos dados. No Brasil, em 2023, por exemplo, os casos de assassinatos de pessoas trans aumentaram mais de 10% em comparação com 2022. Ressalta-se que, enquanto o país continuava a ser o maior consumidor de pornografia trans em plataformas de conteúdo adulto, permaneceu pelo 15º ano consecutivo como aquele que mais assassinou transexuais no mundo. A Região Nordeste é considerada a segunda região do país que mais mata pessoas trans, representando cerca de 36% dos casos que ocorreram de 2017 a 2023, ficando atrás apenas da Região Sudeste, com 37% dos casos de homicídio desta população, além da persistente subnotificação da violência LGBTfóbica.(8) Tudo isso expõe as dificuldades encontradas pela população transgênero, não apenas na busca por um emprego digno, mas também na luta pelo direito à vida.
Em relação à prática da hormonioterapia, foi constatado que a maioria fazia o uso, representando cerca de 73,7% (Tabela 3), reforçando o que é citado na literatura. Nesse contexto, o uso de hormônios tem sido a primeira e mais importante tecnologia para a modificação corporal usada por homens transexuais que buscam esta modificação, tendendo a ser mais importante até do que a cirurgia de redesignação genital.(1) Todavia pode ser perigoso, pois muitos relataram ter começado a hormonização de forma independente, sem acompanhamento médico. O hormônio utilizado pelos homens trans na terapia hormonal é a testosterona, que apesar de existir legislação para a sua comercialização, não evita que práticas de hormonização ocorram por conta própria, o que implica riscos à saúde, visto se adotar um plano terapêutico fragilizado, pois sem acompanhamento de um profissional de saúde especializado.(2)
Tabela 1
Ocupação por Faixa Etária
Ocupação por Faixa Etária | Não informou | Desempregado | Autônomo | Barbeiro | Estudante Ensino Fund. e Médio | Estudante Nível Superior | Outros |
9-14 anos | 0 | 0 | 0 | 0 | 2 | 0 | 0 |
15-19 anos | 1 | 0 | 1 | 0 | 9 | 3 | 0 |
20-24 anos | 0 | 3 | 2 | 2 | 0 | 7 | 10 |
25-29 anos | 2 | 4 | 1 | 2 | 0 | 4 | 13 |
30-34 anos | 1 | 3 | 1 | 1 | 0 | 0 | 2 |
35-39 anos | 1 | 0 | 0 | 1 | 0 | 0 | 1 |
44-49 anos | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 2 |
55-56 anos | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 |
Total: 80
(100%) |
5
(6,2%) |
10
(12,5%) |
5
(6,2%) |
6
(7,5%) |
11
(13,8%) |
14
(17,5%) |
29
(36,3%) |
Nota: As interrupções na sequência das faixas etárias referem-se à inexistência de pacientes atendidos nos grupos de 40 a 43 anos, de 50 a 54 anos e 57 anos ou mais, durante o período analisado, motivo pelo qual tais dados não foram incluídos na tabela.
Tabela 2
Local em que residem os Homens Trans Atendidos pelo Ambulatório TT
Residência | Quantidade |
Natal | 43 |
Parnamirim | 18 |
Caicó | 2 |
Ceará Mirim | 2 |
João Câmara | 1 |
Jucurutu | 1 |
Macaíba | 1 |
Nova Cruz | 1 |
Parelhas | 1 |
São Gonçalo | 3 |
São José do Mipibu | 1 |
Santana dos Matos | 1 |
São Rafael | 1 |
Santa Cruz | 1 |
Lajes | 1 |
Guamaré | 1 |
Doutor Severiano | 1 |
Tabela 3
Faixa Etária x Realização de Hormonioterapia
Faixa Etária | Não informou | Realiza | Não Realiza |
9-14 anos | 1 | 0 | 1 |
15-19 anos | 0 | 6 | 8 |
20-24 anos | 0 | 19 | 5 |
25-29 anos | 0 | 23 | 3 |
30-34 anos | 0 | 6 | 2 |
35-39 anos | 0 | 2 | 1 |
44-49 anos | 0 | 2 | 0 |
55-56 anos | 0 | 1 | 0 |
Total: 80
(100%) |
1
(1,3%) |
59
(73,7%) |
20
(25%) |
Nota: As interrupções na sequência das faixas etárias referem-se à inexistência de pacientes atendidos nos grupos de 40 a 43 anos, de 50 a 54 anos e 57 anos ou mais, durante o período analisado, motivo pelo qual tais dados não foram incluídos na tabela.
Quanto ao estado civil, durante o atendimento multiprofissional realizado pelo ambulatório, 32 afirmaram estar solteiros, 32 em relacionamento, 13 casados e três optaram por não informar. A orientação sexual com maior prevalência foi a heterossexual (58,75%), seguindo da bissexual (12,5%), pansexual (2,5%) e homossexual (1,25%). Vinte pessoas optaram por não informar sua orientação sexual (Tabela 4). A orientação sexual e a identidade de gênero são aspectos distintos da experiência humana. Quando um homem trans (uma pessoa designada mulher ao nascer, mas que se identifica e vive como homem) é atraído por mulheres, ele é heterossexual, e se atraído por homens, é homossexual. Assim, homens trans, como qualquer outro grupo, podem ter diversas orientações sexuais: heterossexual, homossexual, bissexual, pansexual, assexual, entre outras.(9)
De acordo com o Relatório Anual de 2023 do INCA, em 2019,(7) no Brasil como um todo, 81,3% das mulheres cisgênero da faixa etária alvo realizaram o exame preventivo há menos de três anos da data da entrevista, ao passo que na Região Nordeste a taxa foi a mais baixa de todas as regiões, com cerca de 76,4% das mulheres cis em dia com o exame.
No presente estudo, houve 40 homens trans dentro da faixa etária preconizada como prioritária para o rastreio. Desses, apenas 12 (30%) afirmaram realizar regularmente o exame de Papanicolaou. Ou seja, 70% dos homens trans atendidos pelo Ambulatório, que deveriam realizar regularmente o exame citopatológico de rastreio de câncer do colo do útero, não o fazem (Tabela 5). Provavelmente, esses números podem estar associados ao preconceito que essa população sofre nos serviços de saúde. Esses dados são alarmantes, pois esses homens estão expostos a essa enfermidade, e precisam manter o controle preventivo mediante esse exame.
Tabela 4
Estado Civil por Orientação Sexual
Estado Civil por Orientação Sexual | Não Informou | Hétero | Bissexual | Homossexual | Pansexual |
Não informou | 3 | 0 | 0 | 0 | 0 |
Solteiro | 5 | 17 | 8 | 1 | 1 |
Casado | 3 | 9 | 1 | 0 | 0 |
Em relacionamento | 9 | 21 | 1 | 0 | 1 |
Total: 80
(100%) |
20
(25%) |
47
(58,8%) |
10
(12,5%) |
1
(1,2%) |
2
(2,5%) |
Tabela 5
Realização regular do exame de Papanicolaou por Faixa Etária
Faixa Etária | Não informou | Não Realiza | Realiza |
9 a 14 | 1 | 1 | 0 |
15 a 19 | 0 | 13 | 1 |
20 a 24 | 0 | 21 | 3 |
25 a 29* | 0 | 18 | 8 |
30 a 34* | 0 | 6 | 2 |
35 a 39* | 0 | 2 | 1 |
44 a 49* | 0 | 2 | 0 |
55 a 56* | 0 | 0 | 1 |
Total | 1 | 63 | 16 |
* Faixa etária que as Diretrizes para o Rastreamento de câncer do colo do útero – INCA(9) preconiza como prioritária para realização do exame de Papanicolaou (25 a 64 anos).
Nota: As interrupções na sequência das faixas etárias referem-se à inexistência de pacientes atendidos nos grupos de 40 a 43 anos, de 50 a 54 anos e 57 anos ou mais, durante o período analisado, motivo pelo qual tais dados não foram incluídos na tabela.
Todos os homens transgêneros que tiveram seus prontuários analisados pela pesquisa eram não histerectomizados, permanecendo com útero e vagina e, portanto, assim como as mulheres cisgênero, estão sujeitos às enfermidades associadas a esses órgãos, como o câncer de colo do útero.(5) Dessa forma, os exames de rastreamento de câncer do colo do útero são necessários. De acordo com as Diretrizes para o Rastreamento do Câncer do Colo do Útero – INCA,(10) no Brasil, o exame citopatológico deve ser priorizado, inicialmente, para mulheres de 25 anos que tiveram atividade sexual. Realiza-se uma vez por ano e, após dois exames anuais consecutivos negativos, a cada três anos. Os exames devem seguir até os 64 anos e serem interrompidos quando, após essa idade, as mulheres tiverem pelo menos dois exames negativos consecutivos nos últimos cinco anos. Apesar das diretrizes citarem apenas as mulheres cis e marginalizarem os homens trans, estas devem ser aplicadas igualmente a essa população, visto que também precisa participar do rastreio, pois correm o mesmo risco de desenvolver o câncer de colo do útero que as mulheres cis, estando muitas vezes mais expostos ao HPV, devido às barreiras sociais diversas.
Quando analisada a taxa de realização regular do exame de Papanicolaou pela ocupação exercida pelos homens trans, no momento do atendimento, observa-se que a baixa adesão está presente em todas as áreas: 80% dos que estavam desempregados, 100% dos autônomos, 83,3% dos barbeiros e 78,6% dos estudantes de nível superior afirmaram não realizar regularmente o exame de rastreio de câncer do colo do útero (Tabela 6). É esperado que os estudantes apresentem uma taxa de rastreio superior às demais ocupações, visto que o acesso à educação e aos cuidados com a saúde atua de forma diretamente proporcional, isto é, maior acesso à educação pressupõe mais preocupação com a prevenção de doenças e agravos.(11) Apesar de os resultados encontrados corroborarem com o esperado, foi muito baixo. Quando comparado com os dados das mulheres cisgênero, apenas 21,4% dos homens transgênero, estudantes de nível superior, realizavam o exame de Papanicolaou de forma regular. No entanto, ao observar os dados das mulheres cisgênero, de acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde 2019, do IBGE,(12) 72,5% daquelas que tinham o nível fundamental incompleto haviam realizado o preventivo há menos de 3 anos, ao passo que entre aquelas com o ensino superior completo, 90,4% realizavam o exame regularmente.
Já em relação ao estado civil, observou-se que apenas 15,3% dos homens trans casados realizavam regularmente o preventivo, enquanto a taxa de realização regular dos solteiros (18,7%) e dos que se encontravam em um relacionamento (25%), durante o período em que foram atendidos, era maior (Tabela 7). Isso pode estar relacionado com a falsa crença de que ter um parceiro fixo não os expõem a infecções sexualmente transmissíveis, como o HPV, e, consequentemente, ao desenvolvimento de câncer do colo do útero.(13)
Tabela 6
Realização regular do exame de Papanicolaou por Ocupação
Não informou | Desempregado | Autônomo | Barbeiro | Estudante fundamental/E.M | Estudante nível superior | Outros | |
Não informou | 0 | 0 | 0 | 0 | 1 | 0 | 0 |
Não Realiza | 3 | 8 | 5 | 5 | 10 | 11 | 21 |
Realiza | 2 | 2 | 0 | 1 | 0 | 3 | 8 |
Total: 80
(100%) |
5
(6,2%) |
10
(12,5%) |
5
(6,2%) |
6
(7,5%) |
11
(13,8%) |
14
(17,5%) |
29
(36,3%) |
Tabela 7
Realização Regular do Exame de Papanicolaou por Estado Civil
Estado Civil | Não informou | Solteiro | Casado | Em relacionamento | Total | |
Realização regular do exame de Papanicolaou | Não informou | 1 | 0 | 0 | 0 | 1 |
Não Realiza | 2 | 26 | 11 | 24 | 63 | |
Realiza | 0 | 6 | 2 | 8 | 16 | |
3
(3,7%) |
32
(40%) |
13
(16,3%) |
32
(40%) |
80
(100%) |
Figura 2
Realização regular do exame de Papanicolaou versus realização de sexo com penetração
Considerando somente os dois municípios com maior prevalência nos atendimentos do Ambulatório TT (Natal e Parnamirim), apenas 18,6% dos homens trans residentes de Natal estavam em dia com o exame de rastreio do câncer do colo de útero. Entretanto, considerando apenas aqueles residentes no município de Parnamirim, 22,2% realizaram, nos últimos três anos, o exame. Quanto à orientação sexual, 76,6% dos heterossexuais afirmaram não realizar o exame, ao passo que todos os bissexuais e pansexuais não realizavam e todos os homossexuais afirmaram realizar. Esses dados também estão associados ao fato de realizar ou não sexo com penetração, visto que o HPV é transmitido, na maioria das vezes, por via sexual, através de microlesões do epitélio, ocasionadas pelo ato de penetração.
Portanto, muitos profissionais podem não considerar como prioridade a realização do exame de Papanicolaou para aqueles que nunca realizaram sexo com penetração, seja pênis-vagina ou qualquer objeto introduzido no canal vaginal.(14) Entretanto, para aqueles que já realizaram a penetração, faz-se necessário o rastreio regular através do exame de Papanicolaou. No estudo, registrou-se que, daqueles que já haviam realizado sexo com penetração, 69,2% não realizavam regularmente o exame de Papanicolaou e apenas 30,8% realizaram (Figura 2). Esses achados são considerados alarmantes pois essas pessoas estão expostas ao desenvolvimento de câncer do colo do útero.
Dos 80 homens trans que tiveram seus prontuários analisados, apenas 16 (20%) realizavam regularmente o exame de Papanicolaou. Desses, 9 (56,3%) não informaram o resultado do último exame e 7 (43,7%) tiveram o resultado negativo para lesão intraepitelial ou malignidade – NILM (Figura 3). Nesse contexto, recentemente foi aprovada a NOTA TÉCNICA N.º 1/2024-INCA/DIDEPRE/INCA/CONPREV/INCA/SAES/MS,(15) com orientações para os gestores do SUS sobre a mudança do método do rastreamento de câncer do colo do útero no Brasil, com a inclusão de técnicas de biologia molecular para a detecção do HPV e da autocoleta, direcionada exclusivamente para mulheres e meninas cisgênero, excluindo a população de homens transgênero.
Desta forma, o presente estudo e todos os dados aqui citados compactuam com a pouca literatura existente sobre o tema no Brasil, mostrando que a grande maioria dos homens transgênero não é incluída nos serviços de saúde e tampouco nas políticas públicas de rastreio de câncer do colo uterino, sendo completamente invisibilizados e, consequentemente, marginalizados.
Figura 3
Resultado NILM
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Urge, assim, a necessidade de mudanças no cenário da saúde pública. Faz-se necessária a inclusão dos homens trans por meio do desenvolvimento de diretrizes específicas para eles, baseando-se em estudos e nas vivências trans, no incentivo a novos estudos, em investimentos e divulgação de clínicas, que os acolham e os instruam para a realização regular do exame de Papanicolaou, como o Ambulatório TT.
A formação de profissionais de saúde é outro ponto determinante para alcançar a melhoria da prestação de serviços de saúde à população transgênero. É de suma importância que os profissionais, ainda durante a sua formação acadêmica, tenham contato com a temática e sejam ensinados como devem atendê-los, respeitando o nome social e não constrangendo o paciente.
É crucial que o Papanicolaou seja tratado como um exame inclusivo, para pessoas com colo de útero, não apenas à população feminina, mudança que deve ocorrer desde a criação de publicidades direcionadas a esta população, como a adequação para a oferta de clínicas neutras e inclusivas, não mais associando o Papanicolaou ao feminino performático.
AGRADECIMENTOS
A toda equipe do ambulatório TT, Hospital Giselda Trigueiro e do Instituto de Medicina Tropical – IMT Clínico do Rio Grande do Norte por disponibilizar todo conteúdo necessário para produção do presente trabalho. E a todos os homens transexuais do Rio Grande do Norte que diretamente forneceram seus dados para o conhecimento epidemiológico desta população. O nosso mais sincero agradecimento e respeito.
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Correspondência
Breno Figueiredo Souza
E-mail: [email protected]