Avaliação de indicadores da qualidade da coleta de esfregaços citopatológicos cervicovaginais

Quality indicators evaluation of sample collection in positive cervical smears

 

Marcelo Fontana Vitto1, Luciane Noal Calil2, Lisiane Cervieri Mezzomo3

 

1  Universidade Feevale – Curso de Especialização em Citopatologia Diagnóstica. Novo Hamburgo, RS, Brasil.

2  Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Faculdade de Farmácia, Departamento de Análises. Porto Alegre, RS, Brasil.

3  Doutorado em Patologia – Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Professora do curso de Especialização em Citopatologia Diagnóstica da Universidade Feevale. Novo Hamburgo, RS, Brasil.

 

 

Recebido em 16/07/2020

Aprovado em 09/03/2022

DOI: 10.21877/2448-3877.202202043

 

INTRODUÇÃO

 

O câncer de colo do útero tem como principal causa a infecção persistente por alguns tipos oncogênicos do papiloma vírus humano (HPV). É o terceiro tumor mais frequente na população feminina e a quarta causa de morte de mulheres por câncer no Brasil.(1)

A queda da taxa de mortalidade está relacionada ao diagnóstico precoce da doença, e nesse contexto, a citologia pelo método Papanicolaou apresenta boa sensibilidade e especificidade quando utilizada como método de triagem (2) A principal finalidade do método citológico é o rastreamento das lesões pré-malignas e malignas, as quais são posteriormente submetidas à métodos confirmatórios para a conclusão diagnóstica.(3)

Entretanto, o teste de Papanicolaou é alvo de críticas, uma vez que o desempenho do exame está associado à variáveis como a coleta e a interpretação citomorfológica, podendo gerar com isso, resultados falso-negativos ou falso-positivos.(4) Entre as causas de resultados falsos negativos estão a ausência de representatividade ou escassez de células neoplásicas e pré-neoplásicas em pacientes com lesões, fundo da lâmina necrótico ou inflamatório(5) e espessura do esfregaço(6), que dificultam a análise.

O relato da presença dos componentes celulares no laudo citopatológico é preconizado pelo sistema de Bethesda,(7) sendo que a descrição da adequação da amostra e das células representativas da junção escamocolunar (JEC), metaplásicas e endocervicais, se relacionam à qualidade da coleta.(8,9)

O presente estudo tem como objetivo verificar a adequabilidade de amostras citopatológicas cervicovaginais classificadas previamente como positivas para lesões pré-malignas e comparar as amostras coletadas por profissionais que receberam treinamento padronizado no laboratório clínico com as amostras citológicas provenientes de unidades externas ao laboratório.

 

METODOLOGIA

 

Trata-se de estudo transversal realizado em laboratório privado de médio porte, a partir da análise dos resultados de exames citopatológicos cervicovaginais provenientes do banco de dados do laboratório. Foram incluídos exames com resultados positivos para lesão intraepitelial ou malignidade nos anos de 2017 e 2018.

Entre os dados avaliados estão o percentual de amostras satisfatórias, fatores obscurecedores que limitaram a análise morfológica e a presença das células representativas da JEC (metaplásicas e endocervicais).

Além disso buscou-se comparar esses parâmetros entre o grupo de resultados provenientes das coletas realizadas por profissionais que receberam treinamento padronizado pelo laboratório clínico, com as amostras coletadas por profissionais externos ao laboratório. Para isso, dividiu-se essas amostras em dois grupos, A e B. O grupo A foi composto por amostras coletadas por coletadores do laboratório clínico que totalizaram 15 profissionais sem experiência anterior em coleta de exame citopatológico, com idade entre 23 e 35 anos. Todos os profissionais receberam treinamento teórico de quatro horas, que abordou a coleta da ectocérvice e endocérvice, bem como a confecção e a fixação da lâmina. Além disso, foi ministrado um treinamento prático assistido por um profissional especialista em citopalogia, o qual posteriormente foi o responsável pela análise das lâminas coletadas.

O Grupo B foi composto por amostras coletadas externamente ao laboratório objeto desse estudo. Essas são provenientes de pacientes que entregaram as lâminas já coletadas e fixadas para o processamento pelo laboratório. Nesse grupo, não foram identificados os coletadores das amostras ou o tipo de treinamento recebido.

A coleta citológica pelo modo convencional é realizada de acordo com o Manual Técnico do Ministério da Saúde(2). Preconiza-se que após a introdução do espéculo seja realizada uma análise visual do colo, de modo a localizar a JEC. O procedimento de coleta deve ser realizado na ectocérvice e na endocérvice, usando a espátula de Ayre para a coleta ectocervical e a escova cervical para a coleta da endocérvice e, por último, a fixação do material. A identificação da lâmina deve ser feita com um lápis na extremidade fosca.(10)

Todos os resultados de exames incluídos nesse estudo foram classificados, segundo critérios de Bethesda:(7)

  1. Satisfatório: presença de 8.000 a 12.000 células epiteliais escamosas bem visualizadas e preservadas, presença de células endocervicais e/ou metaplásicas bem preservadas;
  2. Satisfatório, porém apresentando fatores que prejudicam parcialmente a análise: fatores de obscurecimento (sangue, infiltrado leucocitário, áreas espessas, dessecamento, artefatos de estiramento, citólise e contaminação) que prejudicam a interpretação de 50% a 75% das células epiteliais e/ou ausência de células endocervicais ou metaplásicas.

A partir disso, as amostras incluídas no presente trabalho foram submetidas à análise de frequência, sendo então consideradas a média e o desvio padrão.

 

RESULTADOS

 

Foram analisados um total de 192 laudos de citologia convencional de pacientes com idade entre 16 e 60 anos. Destes, 108 (56,25%) foram coletados por profissionais do laboratório e 84 (43,75%) coletados por profissionais externos.

Identificou-se que o grupo que recebeu treinamento padronizado no laboratório (Grupo A) teve maior percentual de amostras satisfatórias sem fatores limitantes ou obscurecedores n=102 (94,4%) quando comparado ao grupo de amostras coletadas externamente (Grupo B) n=70 (83,3 %). (Figura 1).

Além disso, a representação dos componentes da JEC no grupo A foi superior ao grupo B. A presença de células glandulares foi identificada em 76 amostras (70,37%), e em 51 amostras (60,71%), respectivamente. Células metaplásicas também foram mais frequentes no Grupo A, com n=23 (21,30%) que no grupo B (n=14, 16,67%). (Figura 2).

Os tipos de alterações citomorfológicas encontradas nos laudos avaliados foram divididos em:

Atipias e lesões epiteliais escamosas abrangendo células maduras, que incluem: atipias de significado indeterminado (ASC-US) e lesão Intraepitelial escamosa de baixo grau (LSIL);

Atipias e lesões epiteliais escamosas abrangendo células escamosas com aparência imatura que incluíram: atipias de células escamosas, em que não se pode descartar uma lesão de alto grau (ASC-H) e lesão intraepitelial escamosa de alto grau (HSIL);

Lesões glandulares: Célula glandular atípica (AGC) e adenocarcinoma.

O Grupo A apresentou menor percentual de lesões e atipias em células maduras, com 70,4% (n=76), média inferior ao do Grupo B, com 81% (n=68). Já as lesões em células mais imaturas corresponderam a 19,4% (n=21) no Grupo A, resultado superior ao do Grupo B, com 9,5% (n=8). Em lesões glandulares, o Grupo A, teve 10,2% (n=11), e no Grupo B, 9,5% (n=8). (Tabela 1).

Figura 1

Distribuição celular dos laudos analisados

Legenda: Comparação das coletas realizadas pelos dois grupos para os diferentes epitélios. Grupo A: profissionais que receberam treinamento padronizado pelo laboratório. Grupo B: coletas realizadas por profissionais não treinados pelo laboratório. Dados em percentual.

Tabela 1

Tipos de lesões encontradas nos exames citopatológicos cervicovaginais

Laudos avaliados

Alterações citológicas

Grupo A Grupo B
% n Idade (DP) % n Idade (DP)
ASC-US / LSIL 70,4 76 32 (10) 81 68 37 (11)
ASC-H / HSIL 19,4 21 35 (7) 9,5 8 48 (11)
AGC / Adenocarcinoma 10,2 11 37 (11) 9,5 8 39 (10)
Total 100 108 34,6 100 84 41

Legenda: ASC-US (células escamosas atípicas de significado indeterminado) e LSIL (lesão intraepitelial escamosa de baixo grau); ASC-H (células escamosas atípicas, em que não se pode descartar uma lesão de alto grau) e HSIL (lesão intraepitelial escamosa de ato grau); Lesões glandulares: AGC (células glandulares atípicas) e Adenocarcinoma endocervical.

*Idade média das pacientes e desvio padrão (DP)

 

DISCUSSÃO

 

É inquestionável que o exame citopatológico possui relevância significativa para o rastreamento do câncer cervical. Entretanto, discute-se sobre estratégias para aumentar a sensibilidade e diminuir as taxas de falsos negativos. Juntamente com a representatividade dos componentes da JEC, a baixa celularidade e fatores obscurecedores podem ser os principais problemas na análise citopatológica.(7,9,11)

O presente estudo mostrou maior frequência de amostras satisfatórias com ausência de fatores obscurecedores no grupo de coletadores treinados pelo laboratório quando comparadas às amostras coletadas por profissionais externos não treinados pelo laboratório, o que demonstra a influência positiva de um treinamento dos profissionais que coletam amostras citopatológicas.

Além disso, é descrito na literatura que a eficácia da citologia cervical para a detecção de alterações pré-malignas e malignas é dependente da adequada amostragem da zona de transformação, e que a ausência de representação dessas células é o fator limitante mais frequente encontrado nos esfregaços citopatológicos cervicais.(11) Entretanto, na prática, muitas vezes as amostras citológicas não contemplam tais componentes celulares. A literatura apresenta dados bastante divergentes em relação a representatividade dos componentes da JEC: um estudo publicado por Amaral et al.(11)  demonstrou a ausência de células endocervicais em 52,2% dos esfregaços, uma parcela bastante significativa de exames.

Já Ughini e Calli(9) mostraram que 98,3% das amostras apresen­taram ausência de componentes da JEC. Por outro lado, Ramos et al.(15) demonstrou que em 16,81% dos casos positivos, as amostras apresentavam ausência de células endocervicais ou metaplásicas. Embora no presente trabalho o percentual de amostras sem representatividade dos componentes da JEC seja bem inferior aos estudos supracitados, é importante destacar que obteve-se maior porcentagem de amostras que obtinham representatividade os componentes da JEC naquelas coletadas por profissionais treinados de forma padronizada pelo laboratório o que demonstra que a coleta realizada por esses profissionais foi realizada conforme preconizado pelas diretrizes, e ainda, que o treinamento sobre a coleta adequada pode ter resultados significativos nos exames.

A representatividade de células endocervicais no exame citopatológico é influenciada por diversos fatores, dentre os quais destacam-se a experiência do coletador das amostras e o instrumento utilizado para a coleta, sendo a escova endocervical a mais recomendada para citologia convencional.(2,12,13) É necessário mencionar ainda as condições clínicas individuais das pacientes, que podem limitar ou mesmo impossibilitar o acesso às células representativas da JEC no colo do útero, como histectomia e menopausa. Na menopausa, uma condição clínica na a JEC encontra-se na camada mais interna do canal endocervical devido a ação fisiológica hormonal, a presença dos componentes da JEC são mais escassos nos esfregaços, mesmo a amostra tendo sido coletada do local adequado. Entretanto, nesse estudo, esses dados individuais das pacientes incluídas não foram avaliados.

Há relatos na literatura que demonstram que a presença de células endocervicais na amostra está relacionada ao aumento de detecção de anormalidades do colo do útero(11, 14-16). Nesse contexto, para investigar o efeito da presença das células endocervicais, Mauney, Eide, Sotham,(17) revisaram 36.853 exames citopatológicos, e concluíram que lesões foram detectadas 2 a 3 vezes mais frequentemente em amostras que continham células endocervicais. Esses dados são corroborados por outros estudos que demonstram que o percentual de lesões pré-malignas parece ser superior em amostras com representatividade dos componentes da JEC.(11,12)

No presente estudo, foi possível identificar que em ambos os grupos foram identificadas lesões glandulares, embora o percentual seja ligeiramente superior no grupo A. Evidenciou-se também uma maior porcentagem de lesões e atipias escamosas como ASC-H e HSIL nas amostras coletadas pelo grupo que que recebeu treinamento no laboratório (19,4%) quando comparado às coletas realizadas por profissionais externos ao laboratório (9,5%). No estudo de Amaral, et al.,(11) a frequência de lesões como ASC-H e HSIL foi três a quatro vezes maior nos casos em que a adequabilidade da amostra foi satisfatória para análise quando comparada aos esfregaços com adequabilidade da amostra apresentando algum fator limitante e ausência de células endocervicais e/ou metaplásicas. Entretanto, são necessários mais estudos com uma amostra maior para que se estabeleça correlação entre esses dados.

A partir dos dados desse estudo e dos relatos publicados na literatura, é possível mencionar que os exames citopatológicos de rastreamento para o câncer do colo do útero e suas lesões precursoras apresentam diversidade dos padrões, que podem estar associados não só à variabilidade e condições clínicas de cada paciente, mas também à coleta da amostra. Assim, a ausência da JEC é sabidamente um fator limitante para o diagnóstico das lesões,(3) e portanto, para que seja realizada uma coleta adequada, faz-se necessário treinamento e orientação dos profissionais envolvidos com o objetivo de melhorar a qualidade e sensibilidade do exame. Dessa forma, o treinamento constante é uma ferramenta importante para uma coleta adequada, visando aumentar os índices de desempenho do exame citopatológico.

 

CONCLUSÃO

 

O câncer cervical continua com altas taxas de mortalidade em todo o mundo, apesar do progresso no diagnóstico e tratamento nas últimas décadas. Assim, é evidente a importância de qualificar e atualizar os profissionais sobre as condutas adotadas com relação à coleta do exame citopatológico para que ele continue efetivo como estratégia de rastreamento.

A coleta das amostras é um fator pré-analítico sabidamente interferente nos exames citopatológicos, e por isso os profissionais que atuam nessa área devem estar atentos às diretrizes estabelecidas para uma coleta adequada. Dessa forma, os resultados aqui descritos podem embasar futuros treinamentos dos profissionais envolvidos na coleta das amostras cervicais, com o objetivo da melhoria no desempenho da coleta e, consequentemente no exame.

 

REFERÊNCIAS

 

  1. BRASIL. INCA. Colo do útero. Disponível em: http://www2.inca.gov.br/wps/wcm/connect/tiposdecancer/site/home/colo_utero/definição. Acesso em 31/10/2018.
  2. BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Caderno de referência 1: citopatologia ginecológica. Tiragem: 1a Edição – 2012. Brasília.
  3. Tuon FFB, et al. Avaliação da sensibilidade e especificidade dos exames citopatológico e colposcópico em relação ao exame histológico na identificação de lesões intraepiteliais cervicais. Rev Assoc Med Bras. 2002; 48(2): 140-4.
  4. Franco R, et al. Fatores associados a resultados falso-negativos de exames citopatológicos do colo uterino. Rev Bras Ginecol Obstet. 2006; 28(8): 479-85.
  5. Tavares SBN, et al. Controle da Qualidade em Citopatologia Cervical: Revisão de Literatura. Revista Brasileira de Cancerologia. 2007; 53(3): 355-364.
  6. Silva GPF, et al. O impacto da fase pré-analítica na qualidade dos esfregaços cervicovaginais. RBAC. 2017;49(2):135-40.
  7. Nayar R, Wibur DC. Sistema Bethesda para relato de citologia cervical. 3a ed. Rio de Janeiro: Livromed; 2015.
  8. Dallazem B, et al. Comparação de amostras citopatológicas cervicovaginais coletadas nas unidades básicas de saúde e em clínicas privadas no meio-oeste de Santa Catarina. Rev Bras Ginecol Obstet. 2018;. 40,(2,): 86-91..
  9. Ughini FSO, Callil LN. Importância da qualidade da coleta do exame preventivo para o diagnóstico das neoplasias glandulares endocervicais e endometriais. RBAC. 2016;48(1):41-45.
  10. BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE. Prevenção do colo do útero. Manual técnico para profissionais da Saúde. Brasília, 2002.
  11. Amaral RG, et al. Influência da adequabilidade da amostra sobre a detecção das lesões precursoras do câncer cervical. Rev Bras Ginecol Obstet. 2008; 30(11):556-60.
  12. Celasun B. Presence of endocervical cells and number of slides in cervicovaginal smears. Differences in performance between gynecologists. Acta Cytol. 2001; 45:730-4.
  13. Zambrano AS, González BM. Citología en base líquida: parámetros de eficacia. Rev Obstet Ginecol Venez. 2015; 75:187-99.
  14. Santos FAPS, et al. Exame Papanicolaou: avaliação da qualidade do esfregaço cervical. Rev Rene. 2011; 12(3): 645-8.
  15. Ramos NPD, Amorim JA, Lima CEQ. Câncer do colo do útero: influência da adequação da amostra cervical no resultado do exame citopatológico. RBAC. 2008; 40(3):215-8.
  16. Santos ML, Moreno MS, Pereira VM. Exame de Papanicolau: qualidade do esfregaço realizado por alunos de enfermagem. Rev Bras Cancerol. 2009; 55:19-25.
  17. Mauney M, Eide D, Sotham J. Taxas de condiloma e displasia em Papanicolaou esfregaços com e sem células endocervicais. Diagn Cytopathol. 1990; 6:18-21.

 

 

Correspondência

Lisiane Cervieri Mezzomo

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