A bioética laboratorial e a pandemia de COVID-19

Laboratorial bioethics and COVID-10 pandemic

 

Desde a antiguidade, o homem tem demonstrado preocupação com as condutas e atitudes dos profissionais de saúde no que concerne à proteção da vida. Na longínqua Babilônia, foi elaborado o conhecido Código de Hammurabi, considerado o código jurídico mais antigo já descoberto pela arqueologia, remontando ano de 1.780 a.C. Esse código, além de regular e ordenar as relações sociais e de propriedade, legislava sobre diversas situações concretas e pontuais como as relações médico-paciente. O Código de Hammurabi estabelecia os limites dos direitos e deveres dos profissionais de saúde, o pagamento pelos bons serviços e as punições para a má prática médica, conjuminando a boa medicina ao bom resultado de sua intervenção.(1) A Torá judaica, escrita por volta de 1.200 a.C., também pode ser considerada como um outro antigo código que exorta a proteção à vida ao proclamar em seu Quinto Mandamento “Não Matarás” e ao apresentar diversas práticas médicas que tinham como objetivo a preservação ou a recuperação da saúde da população.(1,2) Por fim, a locução latina Primum non Nocere (Primeiro não Prejudicar), atribuída a Hippocrates de Cos (460 a.C. – 377a.C.), é outra antiga referência à indispensável prevenção de riscos e danos irredimíveis aos pacientes.(2)

Na atualidade, a preocupação com a vida passou a compor uma nova ciência, denominada bioética, cujo escopo é estudar de forma sistemática a conduta humana no campo da biologia e da atenção à saúde, tendo como base valores e princípios éticos. Todavia, com os avanços da ciência e da tecnologia, a bioética tem estendido seu campo de ação a toda atividade humana que impacta a vida, incluindo a natureza e os animais.(1) Essa ciência tem como ferramenta de trabalho a ética filosófica e seus próprios princípios bioéticos (autonomia, justiça, beneficência, não-maleficência e solidariedade), que tradicionalmente têm sido assim enumerados:(1,3)

  • A autonomia é um princípio que emana do conceito de liberdade do indivíduo em todas as circunstâncias vitais. Esse princípio refere-se ao direito do paciente de participar na tomada de decisão em relação à realização de exames laboratoriais e à escolha do tratamento ou acerca de qualquer prática médica que lhe seja proposta. Decorre do princípio de autonomia o Consentimento Livre e Esclarecido.
  • A justiça é um princípio que apresenta duas vertentes: a distributiva, que incorpora a destinação equitativa dos recursos materiais e financeiros, e aquela relacionada à igualdade de tratamento, não discriminação ou não exclusão de grupos ou pessoas.
  • A beneficência reitera a obrigação moral do profissional e das equipes de saúde de agirem sempre em prol e pelo bem do paciente.
  • A não-maleficência está associada à não produção de danos e/ ou a sua prevenção, estando contido nesse princípio não matar, não provocar dor ou sofrimento e não produzir incapacidades.
  • O princípio da solidariedade, incorporado mais recentemente, se articula com propostas relacionadas à dignidade do ser humano e o respeito à sua vulnerabilidade, tendo grande interface com os princípios da justiça/ equidade e autonomia.

 

Nesse contexto de pandemia, onde o Coronavírus se transformou em um ente perturbador do bem comum e da dignidade humana, produzindo uma realidade danosa à saúde coletiva (física e psicológica), à vida cotidiana e à economia, comprometendo o presente e o futuro das pessoas e das sociedades, a bioética, a partir de seus princípios, surge como um importante instrumento de mitigação dos efeitos maléficos da COVID-19 pela salvaguarda dos direitos humanos profundamente corroídos pela crise sanitária que tem sido experimentada pela humanidade.(4,5)

Na linha de frente desse combate estão os profissionais de saúde que frequentemente têm que tomar decisões céleres e com elevado grau de complexidade em ambientes escassos de recursos de toda natureza.(6) Tais decisões, contudo, não podem ferir o respeito à vida e à promoção da saúde, bem como devem permitir o desenvolvimento de outros bens e benefícios aos pacientes. Importa reiterar que reflexões bioéticas sobre a prevenção, a cura e o cuidado às pessoas afetadas por esta pandemia devem ser o fio condutor das deliberações médicas e laboratoriais nas diversas especialidades da medicina. Essas reflexões ajudam ainda a ordenar e a colocar os valores e a ética profissional acima dos interesses pessoais ou institucionais.(6,7)

No âmbito das análises clínicas, um diagnóstico rápido e preciso dos casos de COVID-19 é fundamental para identificar, isolar e tratar os pacientes infectados.(8) Diferentes técnicas estão disponíveis e a implementação de cada uma delas depende do que se desejar investigar e avaliar. No entanto, a despeito da técnica escolhida, elementos éticos deverão ser também considerados na atividade laboratorial a fim de suprimir ao máximo qualquer prejuízo que possa ser causado ao paciente.(8,9)

Dentre a multiplicidade de elementos éticos e metodológicos que devem ser contemplados por um laboratório de análises clínicas envolvido no trabalho de apoio diagnóstico da infecção pelo Coronavírus, podem ser considerados:(8,3,1)

  • Autonomia: A confidencialidade de dados e a privacidade dos pacientes devem ser protegidas. Nesse caso, há uma exigência moral de respeitar a autonomia do paciente, a sua liberdade de escolha, a proteção de informação privada ou o acesso ao seu corpo.
  • Beneficência: Os exames laboratoriais devem estar orientados para o benefício do paciente e com fins diagnósticos. Nessa situação, há uma obrigação em se fazer todo o esforço em prol do paciente, atuando de maneira a ajudar na melhoria ou recuperação de sua saúde.
  • Não-Maleficência: Tecnologias ou procedimentos que possam produzir algum dano ao paciente não devem ser empregados. Nesse caso, há uma preocupação em não infligir dano ao paciente de forma intencional.
  • Não-Maleficência: Processos automatizados devem ser preferencialmente utilizados a fim de minimizar os erros e aumentar a celeridade diagnóstica. Nessa situação, procura-se evitar demoras na instituição do tratamento com prejuízos à saúde do paciente.
  • Não-Maleficência: As limitações das técnicas de diagnóstico laboratorial empregadas devem ser conhecidas e previstas. Nesse contexto, tenciona-se evitar equívocos de diagnóstico provocando danos ao paciente.
  • Beneficência: O treinamento, a qualificação e a atualização de todo o corpo técnico do laboratório deve ser permanente. Essa ação consiste na prática do bem ou na virtude de beneficiar o paciente através do melhor desempenho profissional.
  • Não-Maleficência: O manejo de pacientes e das amostras biológicas deve ser procedido empregando-se todas as medidas de biossegurança requeridas. Nesse caso, considera-se atendido o clássico conceito desse princípio “não causar dano e minimizar prejuízos”.
  • Beneficência: A solicitação de exames laboratoriais deve ser feita preferencialmente para subsidiar decisões terapêuticas. Essa situação solicita que o profissional de saúde tenha a maior convicção e a melhor informação técnica possível para assegurar que ato [solicitação] seja efetivamente benéfico ao paciente.
  • Justiça/Solidariedade: A obtenção da amostra clínica deve ser realizada seguindo as normas de segurança biológica, com adequada técnica e no correto período de tempo de evolução da doença. Nesse caso, tem-se a preocupação de se evitar a realização de um exame laboratorial em período clínico equivocado, o que pode produzir um resultado falso negativo e determinar desperdício dos escassos recursos públicos.
  • Não-Maleficência: O transporte da amostra clínica até o laboratório deve ocorrer com o emprego dos protocolos de segurança biológica e no menor tempo de deslocamento possível. Nesse caso, procura-se evitar a perda de qualidade da amostra, o que pode trazer prejuízos ao correto diagnóstico laboratorial e à saúde do paciente.
  • Não-Maleficência: A interpretação dos resultados obtidos deve ser realizada com prudência dentro do contexto clínico. Nessa situação, procura-se minimizar os erros de leitura dos resultados para se evitar a produção de diagnósticos inconclusivos e atrasos na instituição do tratamento do paciente.
  • Justiça/Solidariedade: Não é justificada a realização de exames laboratoriais que não apresentem a sensibilidade requerida ou que não acrescentem novas informações sobre o quadro clínico do paciente. Nesse contexto, procura-se evitar desperdícios dos limitados recursos públicos.
  • Justiça/Solidariedade: A repetição de um exame laboratorial deve considerar o curso natural da virose. Nesse contexto, tenciona-se prevenir desperdícios dos exíguos recursos públicos.
  • Autonomia/Solidariedade: O resultado obtido deve ser informado ao paciente em termos claros e compreensíveis. Nessa situação, procura-se respeitar o estado de vulnerabilidade do paciente e reconhecer seu valor.
  • Não-Maleficência: As amostras sob custódia do laboratório devem permanecer em local seguro e de acesso restrito. Nesse caso, tem-se como objetivo a prevenção da contaminação de profissionais de saúde e pacientes.

 

O laboratório clínico é uma importante ferramenta de combate e controle à pandemia de COVID-19, apresentando, inclusive, posição estratégica nos sistemas sanitários nacionais.(7) Para fazer frente ao estado de exceção vivido na atualidade pela população mundial, além da indispensável competência técnica, tem sido verificada a necessidade de incorporação dos princípios bioéticos na atividade de laboratório, em decorrência dos dilemas morais que surgiram com a pandemia, principalmente aqueles relacionados à perda temporária de direitos no âmbito social, da assistência sanitária, da saúde pública, da investigação em saúde e das políticas sócio-sanitárias e econômicas.(2,6) Como cada fase do processo analítico tem aspectos éticos característicos que devem ser considerados para o estabelecimento de uma prática diagnóstica onde haja a proteção daqueles pacientes vulnerabilizados pela pandemia, a discussão e reflexão acerca da bioética laboratorial e da aplicação de seus princípios é inescapável nesse momento histórico da saúde pública.(4,6,10)

 

Referências

  1. Padovani-Cantón, AM, Clemente-Rodríguez, ME. ¿Qué es la biética? Rev Ciencias Médicas de Pina del Río. 2010; 14(1).
  2. Jerónimo J, Orozco, LT, Reynaud, AC. Bioética na práctica de la colposcopia. Ver Perú Ginecol Obstet. 2021; 67(2).
  3. Giordano A, Canale, A, Pontet J, Reyes N, Cacciatori A, Correa H, Núñez LA. Recomendaciones de la Sociedad Uruguaya de Medicina Intensiva sobre los aspectos bioéticos en la pandemia COVID-19. Rev Med Urug. 2021; 37(1): e37111.
  4. Capella VB. Bioética, derechos humanos y COVID-19. Cuad Bioética. 2020; 31(102): 167-182.
  5. Pastor LM. COVID-19 y Bioética. Cuad Bioética. 2020; 31(102): 131-138.
  6. Pérez-Conforme HG, Pincay-Muñoz, NG, Pinela-Torres, MN, Rodríguez-Parrales, DH. La ética: influye de forma positiva o negativa en el trabajo de laboratorio clínico. Dom. Cien. 2021; 7(5): 233-247.
  7. Campo-Avilés JA. La ética en el laboratório clínico. CCM de Holguín. 2013; 17(1):84-7.
  8. Birnenbaum SJ. Las pruebas de laboratório em tiempo de pandemia. Vida y Etica. 2020; 21 (2): 1-5.
  9. Rodríguez Pérez, LM. Apuntes éticos y bioéticos a considerar la etapa pre analítica del laboratorio clínico. Rev Cub Med Desp Cult Fis. 2019, 14(3): e-47.
  10. Román-Collazo CA, Hernandez-Rodríguez YC, Álvarez-Ochoa RI, Andrade-Campoverde DP. Ciencia, responsabilidad y derecho a la salud en el diagnóstico de la COVID-19. Edu Méd Sup. 2020; 34 (4): e-2525.

 

 

 

Paulo Murillo Neufeld, PhD

Editor-Chefe da Revista Brasileira de Análises Clínicas