Células uroteliais no esfregaço citopatológico cervicovaginal: Relato de caso com revisão de literatura

Urotelial cells in cytopathological cervical smear: Case report with literature review

 

Kelly Belini Rodrigues1, Luciane Noal Calil2, Lisiane Cervieri Mezzomo3

 

1  Farmacêutica. Aluna do Curso de Especialização em Análises Clínicas da UFRGS. Porto Alegre, RS, Brasil.

2  Farmacêutica. Docente do Departamento de Análises e do Curso de Especialização em Análises Clínicas da UFRGS. Porto Alegre, RS, Brasil.

3  Farmacêutica-Bioquímica. Docente do Curso de Especialização em Análises Clínicas da UFRGS. Porto Alegre, RS, Brasil.

 

Recebido em 20/05/2021

Aprovado em 10/03/2022

DOI: 10.21877/2448-3877.202202148

 

 

INTRODUÇÃO

 

O exame citopatológico cervicovaginal consiste na análise microscópica de amostras obtidas das regiões da ectocérvice e endocérvice e visa a detecção de neoplasias do colo do útero e suas lesões precursoras. Além disso, o teste pode ser útil para o diagnóstico de diversas condições não neoplásicas, como a alteração da microbiota vaginal, incluindo achados raros como a presença de células não ginecológicas. A presença dessas células chamadas extrauterinas no esfregaço citopatológico cervicovaginal, apesar de condição rara, já é descrita no Sistema Bethesda 2001.(1-4)

Entretanto, raras publicações descrevem a presença e as características citomorfológicas das células uroteliais no esfregaço citológico.(5) Apesar de raramente encontradas, a falta de critérios para a identificação dessas células em esfregaços citopatológicos cervicovaginais e a escassez de trabalhos sobre o assunto podem gerar desafios de interpretação e resultar em armadilhas de diagnóstico, uma vez que as características dessas células se sobrepõem a algumas lesões pré-neoplásicas cervicais, podendo ser facilmente confundidas.(5,6)

O objetivo deste trabalho é relatar um caso do achado das células uroteliais no esfregaço citopatológico cervicovaginal de forma a estabelecer critérios citomorfológicos para correta identificação dessas células e evitar erros de interpretação no diagnóstico citológico.

 

RELATO DE CASO

 

Paciente feminina, pós-menopausada, com 86 anos no momento da coleta, sem histórico de anormalidades cervicais e sem queixas clínicas, foi submetida a exame citopatológico de rotina. A coleta foi realizada conforme preconizado,(4) com amostragem da ectocérvice e da endocérvice. No momento da coleta não foram observadas características clínicas relevantes pelo médico assistente. A amostra foi processada de acordo com preconizado pela técnica de Papanicolaou, e o diagnóstico citológico foi liberado conforme o Sistema Bethesda 2015.(4)

 

RESULTADOS

 

Achados citológicos

O esfregaço citológico corado pela técnica de Papanicolaou mostrou a presença de células uroteliais das três camadas do epitélio de transição: profunda, intermediária e superficial (células guarda-chuva), bem como algumas células escamosas e colunares. As células uroteliais da camada mais superficial eram as maiores, frequentemente binucleadas e com menos frequência multinucleadas, com nucléolos únicos ou múltiplos e um citoplasma “espumoso” típico (vacúolos citoplasmáticos) (Figuras 1, 2, 3, 4, 6 e 9).

As células da camada intermediária apresentaram formato clássico. Algumas células uroteliais, quando comparadas às células escamosas, apresentaram características citomorfológicas, como aumento nuclear, bi e multinucleação, se assemelhando às células características de lesão intraepitelial escamosa de baixo grau (LSIL), podendo ocasionar erros na identificação laboratorial e, consequentemente, no diagnóstico clínico (Figuras 2, 4, 5, 6, 7 e 9).

As células das camadas mais profundas eram pequenas, poligonais ou redondas, e estavam frequentemente agrupadas, com alta relação núcleo/citoplasmática, leve hipercromatismo e, em alguns casos, com caudas citoplasmáticas (Figuras 2, 5, 6, 7 e 8).

 

 

Figura 1. Esfregaço citopatológico cervical. 1. Presença de célula urotelial madura, binucleada, com núcleos levemente hipercromáticos. 2. Célula em formato colunar. O achado ocasional desse tipo de célula no esfregaço citopatológico pode ser confundido com alterações escamosas como ASC ou LSIL. Coloração de Papanicolaou, 400x.

Figura 2. Esfregaço citopatológico cervical. Presença de algumas células uroteliais binucleadas compondo a maior parte do esfregaço, com núcleos levemente hipercromáticos. Algumas células apresentam maior grau de maturação, enquanto outras são mais imaturas (menores). Fundo da lâmina inflamatório com polimorfonucleares. Coloração de Papanicolaou, 400x.

Figura 3. Esfregaço citopatológico cervical. Presença de uma célula urotelial binucleada ao centro da imagem, com citoplasma denso. Uma célula escamosa madura. Fundo da lâmina inflamatório com polimorfonucleares. Coloração de Papanicolaou, 400x.

 

Figura 4. Esfregaço citopatológico cervical. 1 Presença de uma célula urotelial madura (guarda-chuva) binucleada ao centro da imagem, com uma célula urotelial em menor grau de maturação ao lado, também binucleada. 2. Grupo de células uroteliais da camada mais profunda. Fundo da lâmina inflamatório com polimorfonucleares. Coloração de Papanicolaou, 400x.

 

Figura 5. Esfregaço citopatológico cervical. 1. Nessa imagem há células das camadas intermediárias e profundas, algumas binucleadas com citoplasma denso. 2. Células colunares, do epitélio de transição. Coloração de Papanicolaou, 400x.

 

Figura 6. Esfregaço citopatológico cervical. 1. Presença de uma célula urotelial multinucleada ao centro da imagem (célula guarda-chuva). Células escamosas e células uroteliais com diferentes graus de maturação também são vistas juntamente com fundo inflamatório de polimorfonucleares. Coloração de Papanicolaou, 400x.

 

Figura 7. Esfregaço citopatológico cervical. Presença de diversas células uroteliais binucleadas maduras juntamente com células uroteliais em diferentes graus de maturação. O achado de grande quantidade dessas células confirma a suspeita de material urotelial no esfregaço cervical. Presença de células colunares do epitélio de transição entre o fundo inflamatório com polimorfonucleares. Coloração de Papanicolaou, 400x.

 

Figura 8. Esfregaço citopatológico cervical. Célula urotelial binuclaeada. Presença de células glandulares e fundo com polimorfonucleares leucócitos. Coloração de Papanicolaou, 400x.

Figura 9. Esfregaço citopatológico cervical. Células uroteliais binucleadas juntamente com células uroteliais com discreto hipercromatismo. Os contornos nucleares estão lisos, mostrando ausência de alterações malignas. Coloração de Papanicolaou, 400x.

 

 

 

DISCUSSÃO

 

A presença de células uroteliais no esfregaço citológico é um achado raro, e da mesma forma a literatura científica é escassa em trabalhos publicados com essa abordagem.(5) A correta caracterização citomorfológica dessas células permite que não sejam erroneamente descritas como lesões pré-neoplásicas, com as quais podem ser facilmente confundidas. Seu correto diagnóstico é de suma importância para que pacientes não sejam submetidos à procedimentos invasivos e desnecessários.(7-9)

As células uroteliais compõem grande parte do urotélio, também chamado epitélio de transição, que reveste o interior do trato urinário, partes dos rins, ureteres, bexiga e uretra. O urotélio é um epitélio estratificado altamente especializado e apresenta características únicas como a formação de barreira entre a urina tóxica e a parede da bexiga, previne escapes e tem a capacidade de expansão e retração que acompanham a fisiologia da bexiga. Assim, as células podem ficar mais achatadas quando a bexiga estiver cheia, porém, quando vazia, as células parecem globosas, com aspecto semelhante ao colunar(10-11).

As células epiteliais mais próximas à membrana basal são pequenas e, à medida que originam outras células, aumentam de tamanho conforme migram para a superfície. As células uroteliais localizadas na camada superficial são também chamadas de células “guarda-chuva”. Essas células apresentam tamanho variável, são geralmente grandes, possuem forma poligonal, citoplasma abundante, fino e finamente vacuolizado. Podem apresentar-se contendo muco ou gordura, possuem baixa relação núcleo/citoplasma, podem ser bi ou multinucleadas e ainda apresentar numerosos núcleos da forma esférica à oval, com cromatina finamente granular. Já as células epiteliais que estão mais próximo à membrana basal são pequenas e aumentam seu tamanho conforme migram para a superfície.(10-12)

O estudo publicado por Palaoro e colaboradores(5) é um dos únicos relatos na literatura encontrados até o momento, que descrevem a presença e a morfologia das células uroteliais no esfregaço cervical. Os autores buscaram estabelecer critérios citomorfológicos para a identificação das células uroteliais em esfregaço cervical e evidenciar a relevância em se estabelecer tais critérios, a fim de auxiliar a correta identificação dessas células, evitando possíveis erros nesse processo. O estudo sugere que há maior probabilidade de mulheres em pós-menopausa apresentarem células uroteliais em amostra de esfregaço cervical, possivelmente em virtude das alterações hormonais decorrentes da idade. Além disso, algumas possíveis patologias estariam associadas à presença de células uroteliais no esfregaço, como fístula vesicovaginal, prolapso avançado de bexiga e líquen plano erosivo genital que apresentam, como sintomatologia em comum, a incontinência urinária, promovendo a possível contaminação do canal vaginal no momento da coleta do material. Nos esfregaços do grupo de pacientes com quadro clínico em que a incontinência urinária é uma sintomatologia comum, foi possível observar a presença das células do epitélio de transição. Os autores descrevem ainda que as células da camada mais profunda eram menores, poligonais ou redondas, grande parte agrupadas, com alta relação núcleo/citoplasma e leve hipocromatismo; as células da camada intermediária apresentaram o formato piriforme clássico e as células da camada superficial (células guarda-chuva) eram maiores, grande parte delas multinucleadas com nucléolos únicos ou múltiplos e um citoplasma vacuolizado. Em alguns esfregaços as células guarda-chuva, quando isoladas, apresentaram semelhança com as células LSIL, evidenciando a relevância em elucidar as diferenças citomorfológicas entre os tipos celulares. Esse estudo corrobora esses dados, uma vez que se evidenciaram células com as mesmas características relatadas.

Um aspecto que auxilia no diagnóstico e que favorece a identificação das células uroteliais em detrimento das lesões escamosas é que as células LSIL são comumente associadas a pacientes mais jovens e, portanto, nas mulheres na pós-menopausa, a sua presença bem como uma infeção pelo HPV, é menos provável. Isso é corroborado por dados do Instituto Nacional do Câncer (INCA), que descreve que a LSIL representa a manifestação citológica da infecção causada pelo HPV com maior prevalência em mulheres com idade inferior a 30 anos.(13)

No presente relato de caso não houve associação com as possíveis patologias já descritas na literatura com o achado das células uroteliais no esfregaço cervical, uma vez que a paciente não apresentou história clínica de quaisquer quadros relatados como provável causa do aparecimento dessas células. Entretanto, como se trata de paciente pós-menopausa, o raro surgimento das células uroteliais em exame citopatológico cervicovaginal pode estar também relacionado às alterações hormonais, conforme descreve Palaoro e colaboradores(5).

 

Carcinoma Urotelial (UC) versus Carcinoma Cervical

O carcinoma urotelial é originado das células epiteliais do urotélio. É um tumor raro que corresponde a uma pequena parcela das neoplasias do trato genitourinário, com maior incidência em homens. É classificado conforme o tipo celular afetado, são eles: carcinoma de células de transição em que as células atingidas são as células do tecido mais interno da bexiga; carcinoma de células escamosas, que compromete as células delgadas e planas; as quais podem surgir na bexiga depois de infecção ou irritação prolongadas; e o adenocarcinoma, o qual atinge as células glandulares (secretoras) que podem se formar na bexiga depois de um longo tempo de irritação ou inflamação(14-16).

A disseminação do carcinoma urotelial para o trato genital feminino ocorre em um pequeno subconjunto de mulheres.(14) Um estudo publicado por Reyes e colaboradores(15) avaliou pacientes com idade entre 50 e 83 anos, que apresentaram comprometimento de diversos sítios ginecológicos e identificou que uma vez que há semelhança morfológica entre o carcinoma urotelial e carcinoma escamoso primário, a imuno-histoquímica configura-se como ferramenta auxiliar no diagnóstico dos diferentes carcinomas uroteliais. Proteínas como CK7 e CK20 estavam expressas em 50% a 80% dos casos, e com a adição do marcador p63 a sensibilidade e especificidade para a identificação de neoplasias de origem urotelial é aumentada. Um outro exemplo é o p16INK4a investigado como um marcador útil para as lesões cervicais pelo HPV de alto risco.(15)

 

CONCLUSÃO

 

Esse relato de caso é uma das raras publicações na literatura que descrevem o achado das células uroteliais no esfregaço cervicovaginal juntamente com a descrição de seus critérios citomorfológicos. A escassez de publicações acerca da identificação das células uroteliais em esfregaços cervicovaginais mostra o quão raro é a sua presença neste tipo de amostra. No entanto, elas representam um desafio para os profissionais da área que se deparam com essas células. A fim de evitar erros de interpretação, é de suma importância a padronização dos critérios de diagnóstico, de forma que o achado inequívoco de sua presença em um esfregaço citopatológico possibilite um correto diagnóstico e, como consequência, o correto manejo da paciente.

 

REFERÊNCIAS

 

  1. Moreira AS, Andrade EGS. A importância do exame Papanicolaou na saúde da mulher. Rev Inic Cient Ext. 2018; 1(Esp.3): 267-271.
  2. Rodrigues AMX, Barbosa ML, Matos MDLP. Importância do exame Papanicolaou no diagnóstico precoce de câncer do colo do útero. Rev Multiprofissional em saúde do hospital São Marcos. 2013; 1(1):58-65.
  3. Ughini SFO, Calil LN. Importância da qualidade da coleta do exame preventivo para o diagnóstico das neoplasias glandulares endocervicais e endometriais. Rev Bras de Anal Clin. 2016; 48(1):41-45.
  4. Nayar R, Wilbur DC. The Bethesda System for Reporting Cervical Cytology. Definitions, Criteria, and Explanatory Notes. 3 ed. Springer; 2015.
  5. Palaoro LA, Guerra F, Angeleri A, Palamas M, Melba SS, Rocher AE. Urothelial cells in smears from cervix uteri. Jornal of Cytology. 2012 Jan-Mar; 29(1)41-44.
  6. Brasil. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Coordenação de Prevenção e Vigilância. Divisão de Detecção Precoce e Apoio à Organização de Rede. Diretrizes brasileiras para o rastreamento do câncer do colo do útero. – 2 ed. rev. atual. Rio de Janeiro: INCA, 2016.
  7. Epstein JI, Amin MB, Reuter VR, Mostofi FK (for the Bladder Consensus Conference Committee). The World Health Organization/International Society of Urological Pathology Consensus Classification of urothelial (transitional cell) neoplasms of the urinary bladder. Am J Surg Pathol 1998; 22:1435-1448.
  8. Lucena LT, Zãn DG, Crispim PTB, Ferrari JO. Fatores que influenciam a realização do exame preventivo do câncer cérvico-uterino em Porto Velho, Estado de Rondônia, Brasil. Rev Pan-Amaz Saude. 2011; 2(2):45-50.
  9. Wünsch S, Oliveira SG, Garcia RP, Domingues IB. Coleta de citopatológico de colo uterino: saberes e percepções de mulheres que realizam o exame. R. Enferm. UFSM 2011 Set/Dez;1(3):360-368.
  10. Junqueira LC, Carneiro J. Histologia básica. 12. ed. Rio de Janeiro, RJ: Guanabara Koogan, 2013.
  11. Tone K, Kojima K, Hoshiai K, Kumagai N, Kijima H, Kurose A. An ancillary method in urine cytology: Nucleolar/nuclear volume ratio for discrimination between benign and malignant urothelial cells. Diagnostic Cytopathology. June 2016; 44(6): 459-558.
  12. Toledo LGM, Santos VE, Maron PEG, Vedovato BC, Perez MDC. Fístula vesicovaginal continente. Einstein. 2013; 11(1):119-21.
  13. BRASIL. Ministério da Saúde. Diretrizes Brasileiras para Rastreamento do Câncer do Colo do Útero. Instituto Nacional do Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA). 2016; 2 Ed[KBR1] [KBR2]. Disponível em: http://www.citologiaclinica.org.br/site/pdf/documentos/diretrizes-para-o-rastreamento-do-cancer-do-colo-do-utero_2016.pdf. Acesso em: julho de 2020.
  14. Lambis JR, Herrera SL, Ballestas CA, Mendoza AL, Montenegro SC, González AP. Carcinoma urotelial de tracto urinario superior: reporte de un caso. Rev Ciências Biomédicas. 2015; 6(2):364-368.
  15. Reyes MC, Park KJ, Lin O, Ioffe O, Isacson C, Soslow R A, Reuter VE et al. Urothelial carcinoma involving the gynecologic tract: a morphologic and immunohistochemical study of 6 cases. Am J Surg Pathol. 2012 Jul;36(7):1058-65.
  16. Schwartz LE, Khani F, Bishop JA, Vang R, Epstein JI. Carcinoma of the Uterine Cervix Involving the Genitourinary Tract: A Potential Diagnostic Dilemma. 2016 Jan;40(1):27-35.

 

 

 

Correspondência

Lisiane Cervieri Mezzomo

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