Estudo de caso: Candida spp., Actinomyces spp. e diagnóstico diferencial

Case Study: Candida spp., Actinomyces spp. and differential diagnosis

 

Paula Cristina Mendonça1, Ana Sofia Rodrigues2, Helena Ruivo3, Ana Rita Santos3

 

1  H&TRC – Health and Technology Research Center, ESTeSL, IPL. Lisboa, Portugal.

2  ESTeSL, Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa, IPL. Lisboa, Portugal.

3  Anatomik, Laboratório de Anatomia Patológica, Grupo Clara Saúde. Lisboa, Portugal.

 

Recebido em 14/07/2022

Aprovado em 24/10/2022

DOI: 10.21877/2448-3877.202200054

 

HISTÓRIA CLÍNICA

 

O presente caso clínico relata o caso de uma mulher de 37 anos, com dispositivo intrauterino (DIU), que na consulta de ginecologia apresenta colposcopia normal, sendo a mesma, por norma, caracterizada como mucosa lisa com coloração rosada a par de áreas avermelhadas sem características suspeitas. Foi realizada citologia pelo método convencional e corada através da coloração Papanicolaou.(1)

 

ACHADOS CITOLÓGICOS

 

Na observação microscópica observou-se a zona de transformação, sendo reportada a amostra como satisfatória. Identificou-se presença de infiltrado inflamatório com alterações reativas nas células, como halos perinucleares e anfofilia, a par de elementos fúngicos, como pesudo-hifas (Figuras 1 e 2). Simultaneamente, em outros campos, foram também encontrados agrupamentos bacterianos, com um centro denso e prolongamentos na periferia dispersos de forma radial (Figuras 3, 4 e 5).

Na realização do screening ao logo da lâmina, nem sempre foi fácil distinguir estes dois microrganismos, visto a ambiguidade dos achados encontrados, pois em alguns campos visualizavam-se achados compatíveis com cada um dos microrganismos sobrepostos um ao outro, tal como vemos nas Figuras 4 e 5. Nestes casos, foi necessária uma visualização mais atenta e rigorosa de forma a poder distinguir ambos os microrganismos, mediante a realização de diagnóstico diferencial.

 

Figura 1

Achados compatíveis com Candida spp. num agrupamento de células pavimentosas (coloração Papanicolaou Obj. 40x).

 

Figura 2

Achados compatíveis com Candida spp. num agrupamento de células pavimentosas (coloração Papanicolaou Obj. 40x).

 

Figura 3

Achados compatíveis com Actinomyces spp. num agrupamento de células pavimentosas (coloração Papanicolaou Obj. 40x).

 

Figura 4

Achados compatíveis com Candida spp. e Actinomyces spp. junto de um agrupamento de células pavimentosas (coloração Papanicolaou Obj. 20x).

 

Figura 5

Achados compatíveis com Candida spp. e Actinomyces junto de um grupo de células pavimentosas (coloração Papanicolaou Obj. 20x).

DISCUSSÃO DO CASO CLÍNICO

 

De acordo com os aspectos encontrados, o resultado citológico foi de aspectos reativos a inflamação e infecção por Candida spp. e Actinomyces spp.

Conforme o The Bethesda System for Reporting Cervical Citology, a presença de achados citológicos compatíveis com Candida spp. é definida por esporos de 3μm a 7μm e/ou pseudo-hifas, sendo que estas podem ser bastante longas, atingindo várias células, coradas de tons eosinofílicos a um tom castanho acinzentado, com a coloração de Papanicolaou.(1,2,3)
As pseudo-hifas são formadas a partir de extensões citoplasmáticas, não apresentam divisões completas, contudo mostram constrições ao longo do seu comprimento, o que indica a formação de novas células.(2,3,4) Podem-se apresentar de várias formas, e por vezes representam um efeito de espinha de peixe ao atravessarem o núcleo de leucócitos e dos grupos de células pavimentosas.(3,4)

Descrito através do The Bethesda System for Reporting Cervical Citology, a presença de achados citológicos compatíveis com Actinomyces spp. caracteriza-se por agregados de variadas dimensões de organismos filamentosos, com dispersão radial, sendo conhecidos por mimetizarem uma “bola de algodão”.(2,5,6) Por vezes identificam-se massas de leucócitos aderentes às colônias bacterianas do Actinomyces spp., sendo também comum verificar-se uma resposta inflamatória aguda.(2,5,6) Novamente, é possível visualizar estas características nos achados encontrados na realização do screening da lâmina.

 

DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL

 

Existem inúmeros diagnósticos diferenciais que podem ser realizados quando encontrados achados possivelmente compatíveis com Candida spp., sendo alguns desses achados compatíveis com Leptothrix vaginalis, pela distinção das pseudo-hifas da Candida spp., por serem mais finas e se encontrarem septadas, como é possível visualizar na Figura 6. Também se distingue de achados compatíveis com Actinomyces spp. devido a estes serem mais espessos e normalmente formarem grupos com centro denso.(2,3,5)

As fibras de algodão também podem ser confundidas com achados compatíveis com a Candida spp. devido ao formato das fibras, contudo podem ser distinguidas pelo teu tamanho relativamente maior, assim como por se apresentarem num plano de visualização diferente(2,3,6) (Figura 7).

Os fios de muco, pela sua forma e prolongamentos, devem ser distinguidos de achados compatíveis com Candida spp. por serem mais encurvados e se apresentarem mais dispersos que as pseudo-hifas.(2,3,6) Estes podem ser também confundidos com achados compatíveis com Actinomyces spp., que se distinguem por apresentarem prolongamentos mais densos, dispersos e não formarem grupos com centro denso(2,3,5) (Figura 8).

A presença de espermatozoides também pode ser fonte de ambiguidade. Quando da presença de esporos de Candida spp., devem ser distinguidos pelo fato de os esporos serem birrefringentes, e os espermatozoides, por norma, apresentarem uma zona mais escura e outra mais clara(2,3,6) (Figura 9).

Segundo a literatura, a presença de lubrificante também pode ser um achado que influencia a identificação de Actinomyces spp., em alguns casos, sendo a ausência dos prolongamentos bacterianos um achado a ser considerado neste pitfall(2,7) (Figura 10).

É ainda referida a presença de lactobacilos (bacilos de Döderlein) como possível pitfall de Actinomyces spp., por estes se apresentarem mais finos e de tamanho menor, sendo que quando são observáveis agregados devemos diferenciar pelos lactobacilos isolados e a ausência de prolongamentos(2,7) (Figura 11).

No que diz respeito a outro pitfall, a presença de vaginose bacteriana deve ser diferenciada de achados de Actinomyces spp., dado a ausência de prolongamentos ou de um centro denso, que formam as típicas ‘’bolas de algodão”(2,7) (Figura 12).

 

Figura 6

Leptothrix

Fonte: Case 138. Panel: Bacteria seen in vaginal smear preparations. Disponível em: https://pathos223.com/en/case/case138.htm (Visitado em 15/03/2022)

 

Figura 7

Fibras de algodão

Fonte: Walid E. Khalbuss e Marilee Means Gynecological and Breast Cytopathology Board Review and Self-Assessment, 2013.

 

Figura 8

Fios de muco

Fonte: Case 138. Panel: Bacteria seen in vaginal smear preparations. Disponível em:  https://pathos223.com/en/case/case138.htm (Visitado em 15/03/2022)

 

Figura 9

Espermatozoides

Fonte: Citopatologia General: Contaminantes. Disponível em: https://citopatologiageneral.wordpress.com/contaminantes/contaminantes-22/ (Visitado em 15/03/2022)

 

 

As alterações reativas associadas à inflamação foram relatadas tendo por base a presença de microrganismos e o aumento nuclear com grau variável, mas com contornos nucleares suaves, redondos e uniformes; concomitantemente, os núcleos apresentavam-se vesiculares e hipocromáticos.(2,3,5) Nestas alterações citomorfológicas, podemos também ter alguns campos com limites citoplasmáticos bem definidos, em que o citoplasma pode mostrar policromasia, vacuolização ou halos perinucleares, mas sem espessamento periférico.(2) É de notar que na presença de alterações reativas, as mesmas podem ser acompanhadas da presença de infiltrado inflamatório, ou seja, da presença de polimofornucleares e eritrócitos, como observado na avaliação do screening da lâmina.(2)

As alterações reativas causadas pela presença de microrganismos podem também fazer diagnóstico diferencial com achados citomorfológicos de células pavimentosas atípicas de significado indeterminado (ASC-US), sendo que nesta categoria está presente um aumento nuclear considerável, hipercromasia, um halo perinuclear mais marcado e ausência de eosinofilia(2,5,8) (Figura 13).

No decorrer do screening deste caso, nem sempre foi fácil distinguir ambos os microrganismos em alguns campos conforme anteriormente mencionado, tornando-se assim fundamental uma apreciação descritiva das características, que se encontra descrita na Tabela 1.(2)

O diagnóstico diferencial revela-se fulcral quando da avaliação citológica, pois traz maior segurança ao diagnóstico e, consequentemente, à abordagem terapêutica.

A importância do diagnóstico diferencial se dá na situação de se realizar um relatório citológico de forma mais fidedigna, minimizando as consequências para a mulher, que se for somente relatada com uma situação de Candida spp. poderia vir a desenvolver infecções mais prolongadas por Actinomyces spp., as quais levariam a estados clínicos como actinomicose pélvica, cujo tratamento também é mais moroso/prologado.(9,10) Por outro lado, a identificação do Actinomyces spp. sem a descrição de achados compatíveis com Candida spp., apesar de esta ser mais facilmente tratada e sem consequências a longo prazo, poderá resultar em infecções prolongadas que, em situações extremas, podem levar à candidíase invasiva, especialmente em pacientes imunodeprimidos, que também pode ser uma das consequências da indicação de antibióticos.(11)

O relatório citológico também é relevante quando se avalia a abordagem terapêutica pelo fato de terem sido encontrados achados citológicos compatíveis com dois microrganismos de natureza distinta, fungos e bactérias, o que significa uma abordagem terapêutica diferente.(2,5)

Como forma terapêutica para estas duas infecções, está indicada a aplicação de clotrimazol e de nistatina na área afetada; a indicação do antifúngico fluconazol por via oral,(4,11) para o caso da infecção por Candida spp.; e penicilina ou tetraciclina durante pelo menos dois meses, com a remoção do DIU, para infecções por Actinomyces spp..(9,10) Nos casos em que a infecção se prolonga ou agrava, pode ser necessária a remoção dos ovários, das trompas de falópio e do útero.(9,10) A opção por uma terapêutica bastante mais invasiva deve-se ao fato de as infeções por este microrganismo poderem levar à formação de abcessos, envolvendo a drenagem dos mesmos com realização de uma tomografia computorizada.(7,10)

 

Figura 10

Lubrificante

Fonte: Walid E. Khalbuss e Marilee Means Gynecological and Breast Cytopathology Board Review and Self-Assessment, 2013.

Figura 11

Lactobacilos

Fonte: Ritu Nayar; David C. Wilbur; The Bethesda System for Reporting Cervical Cytology, 2015.

 

Figura 12

Vaginose Bacteriana

Fonte: Ritu Nayar; David C. Wilbur; The Bethesda System for Reporting Cervical Cytology, 2015.

 

Figura 13

ASC-US

Fonte: Ritu Nayar; David C. Wilbur; The Bethesda System for Reporting Cervical Cytology, 2015.

Tabela 1

Pitfalls entre Candida spp. e Actinomyces

Candida spp. Actinomyces spp.
Pseudo-hifas hialinas Prolongamentos arroxeados
Pseudo-hifas septadas como uma “cana de bambu” Prolongamentos formados por cocos
Efeito shish-kabob com células intermediárias Agrupamentos com centro denso e “fios” na periferia
Distribuição variada de hifas e esporos Distribuição radial
Esporos têm tamanho maior que os cocos Cocos; Tamanho menor
Fundo eosinofílico reesultante de inflamação Fundo bacteriano

AGRADECIMENTOS

 

Agradecemos ao Anatomik Pinhal Novo não só pela disponibilização do laboratório, mas também pelo apoio durante o período de estágio que proporcionou a realização deste caso clínico.

 

REFERÊNCIAS

 

  1. Smith B, Gia-Khanh N. Essentials of Pap Smear and Breast Cytology (2012).
  2. Nayar R, Wilbur DC. The Bethesda System for Reporting Cervical Cytology, 2015.
  3. Khalbus W, Means M. Gynecological and Breast Cytopathology Board Review and Self-Assessment (2013).
  4. Naglik J, Moyes D, et al. Candida albicans interactions with epithelial cells and mucosal immunity (2012).
  5. Bush LM. Actinomicose, Charles E. Schmidt College of Medicine, Florida Atlantic University (2019) Manuais MSD edição para profissionais. Recuperado no dia 23 de Dezembro de 2020, a partir de https://www.msdmanuals.com/pt/casa/infec%C3%A7%C3%B5es/infec%C3%A7%C3%B5es-bacterianas-bact%C3%A9rias-anaer%C3%B3bias/actinomicose.
  6. Wick MR, Scott MA. Pathology of selected infectious diseases. In: Silverberg’s Principles and Practice of Surgical Pathology and Cytopathology [Internet]. Cambridge University Press; 2015. p. 85-183. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/product/identifier/9781139137201%23c02283-3-0/type/book_part
  7. Gynaecology Guidelines Committee: Guidelines on the Management of Actinomyces – Like Organisms (Alos) on Smears in Patients with Intra-Uterine Devices (2018).
  8. Zhu W, Filler SG. Interactions of Candida albicans with epithelial cells. Cell Microbiol, 2010.
  9. Myint S. Textbook of pediatric infectious diseases (5th edition). J Infect [Internet]. 2005 Jan;50(1):89. Disponível em: https://linkinghub.elsevier.com/retrieve/pii/S0163445304001306
  10. Ferry T, Valour F, Karsenty J, Breton P, Gleizal A, Braun E, et al. Actinomycosis: etiology, clinical features, diagnosis, treatment, and management. Infect Drug Resist [Internet]. 2014 Jul;183. Disponível em: http://www.dovepress.com/actinomycosis-etiology-clinical-features-diagnosis-treatment-and-manag-peer-reviewed-article-IDR
  11. Reyankar SG. Candidíase, Manuais MSD edição para profissionais. Recuperado em Dezembro 17 de 2020, a partir de: <https://www.msdmanuals.com/pt/casa/infec%C3%A7%C3%B5es/infec%C3%A7%C3%B5es-f%C3%BAngicas/candid%C3%ADase?query=candidiase>.

 

Correspondência

Paula Cristina Mendonça

E-mail:  [email protected]