Estudo in vitro do efeito do ácido ascórbico sobre os parâmetros de ureia e creatinina 

In vitro effect of ascorbic acid on urea and creatinine parameters

 

 

Francisco Hermano Rufino de Moura1

Joana Varlla de Lacerda Alexandre2

Rogério de Aquino Saraiva3

Helenicy Nogueira Holanda Veras4

 

1Biomédico – Centro Universitário Leão Sampaio – Juazeiro do Norte – CE, Brasil.

2Discente do Curso de Biomedicina – Centro Universitário Leão Sampaio – Juazeiro do Norte – CE, Brasil.

3Doutor em Bioquímica Toxicológica – Universidade Federal Rural de Pernambuco – Recife – PE, Brasil.

4Mestre em Bioprospecção Molecular – Centro Universitário Leão Sampaio – Juazeiro do Norte – CE, Brasil.

Instituição: Centro Universitário Leão Sampaio – UNILEÃO – Juazeiro do Norte – CE, Brasil.

Artigo recebido em 15/11/2016

Artigo aprovado em 02/10/2017

DOI: 10.21877/2448-3877.201700548

 

 

Resumo

Objetivo: O presente trabalho teve como objetivo principal analisar as possíveis modificações in vitro do ácido ascórbico nos parâmetros bioquímicos de ureia e creatinina plasmática em amostras de plasma sanguíneo de voluntários saudáveis após a presença de altas concentrações de ácido L-ascórbico. Métodos: Concentrações crescentes de ácido ascórbico (5, 10 ou 40 mg/dL) foram adicionadas ao pool de soro humano e os analitos foram determinados até 1 hora após a adição. O método utilizado nas dosagens de ureia foi o da urease pelo método UV e o de creatinina plasmática foi o enzimático por reação de ponto final, ambas por método colorimétrico. Resultados: Foi verificado que, ao se adicionar a vitamina C nas concentrações de 5, 10 e 40 mg/dL aos pools controle, somente nas concentrações de 10 e 40 mg/dL houve mudanças significativas, sendo que, na concentração de 5 mg/dL, tanto nos parâmetros de ureia quanto no de creatinina, não houve relevante alteração. Conclusão: Conclui-se que a vitamina C, quando presente nas amostras biológicas de soro na concentração mínima de 10mg/dL, é responsável por promover interações com os constituintes dos testes nos parâmetros de ureia e creatinina plasmática. No presente trabalho, o tema abordado traz de fato uma relevante posição em nível de informação para que os analistas clínicos se policiem mais nas análises e liberação dos laudos laboratoriais.

 

Palavras-chave

Ácido ascórbico; Ureia; Creatinina

 

INTRODUção

O ácido ascórbico participa diretamente das reações de redução no interior do organismo humano. A absorção da vitamina C é realizada nas porções distais do intestino delgado, que são o íleo e o jejuno. Existe um limiar de absorção do ácido ascórbico apresentado pelo intestino, que é de aproximadamente 1.200 mg/dia,(1) bem como outras funções muito importantes para o funcionamento biológico ideal do organismo, que são: atuação na síntese de colágeno, epinefrina, corticosteroides, ácido biliar e, ainda, acelera a absorção de ferro e inativa radicais livres.(2)

A interferência de diversas substâncias nas análises clínicas vem admitindo um importante papel na rotina laboratorial interferindo em ensaios e modificando o diagnóstico de diversos parâmetros laboratoriais, como o de glicemia, lipidograma, ácido úrico, ureia e creatinina. A vitamina C apresenta um elevado potencial óxido-redutor, podendo interagir em algumas das fases das reações químicas com alguns elementos dos reagentes utilizados para a determinação dos mais diversos parâmetros bioquímicos.(3,4)

Existem dois tipos de interferências que podem ocorrer no momento da análise, que são classificadas como: interferência in vitro, assim descrita como interferência que ocorre fora de um sistema vivo e interferência in vivo, descrita como interferência que ocorre no interior do próprio sistema vivo. Pode acontecer ainda ambos os mecanismos simultaneamente.(5)

As determinações dos parâmetros laboratoriais bioquímicos de ureia e creatinina têm importante papel na avaliação da função renal. Muitos avanços na área da medicina laboratorial foram operados em relação às ferramentas utilizadas desde a primeira dosagem de creatinina feita por Jaffé em 1886.(6) Com a degradação de proteínas pelo organismo, o principal metabólito gerado é a ureia. Cerca de 90% dessa ureia é excretada pelos rins, sendo o excedente liberado através do trato gastrointestinal e pela pele.(7)

A creatinina é um metabólito originado da degradação da creatina encontrada principalmente nos músculos esqueléticos. A partir do uso da creatina pelos músculos, o que acontece é uma transformação da creatina em creatinina. Toda a creatinina produzida pelo organismo é eliminada pelos rins. Uma vez que a creatinina é filtrada e o excesso não é eliminado, o organismo trata de reabsorver para posterior excreção. É por esse motivo que a dosagem de creatinina torna-se um importante parâmetro laboratorial bioquímico na avaliação da função renal e é de suma importância que essa dosagem venha associada com a dosagem de ureia.(8)

MATERIAL E MÉTODOS

Delineamento do estudo e local de execução dos testes

Tratou-se de um estudo experimental, realizado no Laboratório de Bioquímica do Centro Universitário Doutor Leão Sampaio, localizado na cidade de Juazeiro do Norte, CE.

Obtenção da vitamina e amostras biológicas

A vitamina C (ácido ascórbico) foi fornecida pela farmácia de manipulação Magistral, localizada na cidade de Juazeiro do Norte-CE. As amostras biológicas (soro) foram fornecidas pelo Laboratório de Análises Clínicas da Clínica Escola do Centro Universitário Doutor Leão Sampaio. Para execução dos testes foi utilizado soro de pacientes com valores de referência normais para os analitos (ureia e creatinina) a fim de preparar um pool de soro normal (500 µL de cada soro), totalizando 2 mL cada pool. Os critérios de rejeição para amostras de soro foram: presença de lipemia, hemólise e volume inferior a 500 µL.

Execução dos testes enzimáticos

Inicialmente foram preparados os pools utilizando-se 500 µL do soro de cada paciente, sendo empregadas quatro amostras em cada pool, obtendo-se um volume final de 2 mL e, ao final da produção dos pools, foram utilizadas amostras de soro de 12 pacientes. Em seguida foram adicionados a cada pool de soro concentrações crescentes da vitamina C obtendo-se uma concentração final de 5, 10 e 40 mg/dL.(9) As determinações dos analitos bioquímicos foram feitas na primeira hora após a adição da vitamina, em triplicata, pelo método enzimático colorimétrico relativo a cada enzima e seguindo as instruções do fabricante (Labtest®).

 

Análise estatística

Os dados obtidos foram expressos em média ± desvio padrão (DP) e submetidos à análise de variância (ANOVA) de uma via, seguindo-se do teste de Tukey, utilizando-se o programa GraphPad Prism 3.0. As diferenças foram consideradas significativas quando os valores de p < 0,05.

 

Aspectos éticos da pesquisa

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Centro Universitário Leão Sampaio com número de parecer 1.529.730 em total obediência ao disposto na Resolução n° 466/12 do Conselho Nacional de Saúde. As informações dos pacientes foram mantidas em sigilo para preservação da integridade dos mesmos.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

As tabelas 01 e 02 mostram o grau de interferência do ácido ascórbico nos parâmetros bioquímicos de ureia e creatinina plasmática.

548-1

548-2

Na análise dos testes foi verificado que, ao se adicionar a vitamina C nos pools de soro nas três distintas concentrações, uma hora após a adição, na avaliação da ureia notou-se uma considerável alteração nas concentrações de 10 mg/dL, onde o controle apresentava um valor de 21,6 mg/dL, e após a adição da vitamina C passou para 33,6 mg/dL, expressando um aumento percentual de 55,5%, e, na concentração de 40 mg/dL, onde o controle apresentava valor de 24,3 mg/dL, após a adição da vitamina C passou para 65,5 mg/dL, expressando um aumento percentual de 169,5%.

Na avaliação da creatinina plasmática também foram confirmadas alterações significativas nas concentrações de 10 mg/dL, onde o controle apresentava um valor de 0,39 mg/dL, e, após a adição do ácido ascórbico passou para 1,17 mg/dL, expressando um percentual de aumento de 200%; e, na concentração de 40 mg/dL, onde o controle apresentava valor de 0,49 mg/dL, após a adição da vitamina C passou para 6,4 mg/dL, expressando um percentual de aumento de 1.206%. Tanto nos parâmetros de ureia quanto nos de creatinina plasmática, nos testes realizados com a adição de 5 mg/dL de vitamina C não foram observadas alterações significativas.

A determinação da ureia em amostras biológicas de soro tem papel relevante na avaliação da função renal assim como a determinação de creatinina. A quantificação do metabólito pelo método da urease UV segue o seguinte princípio: a ureia é hidrolisada pela enzima urease onde são produzidos amônia e dióxido de carbono. A amônia reage com 2 cetoglutarato e NADH numa reação catalisada pela enzima glutamato desidrogenase, ocorrendo oxidação de NADH a NAD. A conseguinte diminuição da absorbância é diretamente proporcional à concentração de ureia presente na amostra.(10) Na determinação da creatinina, baseada na reação de Jaffé, segue-se o seguinte princípio: a creatinina participa de uma reação com o picrato alcalino, formando um complexo de coloração avermelhada que tem o grau de absorbância quantificado fotometricamente e é diretamente proporcional à quantidade de creatinina presente na amostra.(11)

Existem diversas substâncias que provocam interferências tanto no parâmetro in vivo como in vitro e uma delas são os fármacos. Vale ressaltar que a vitamina C é considerada por muitos autores como um medicamento. Vários medicamentos podem promover alterações clínico-labo­ratoriais, como é o caso da anfotericina B, que é um fármaco utilizado no tratamento de pacientes com infecções fúngicas progressivas potencialmente graves. Esse medicamento é responsável por causar interferência in vivo nos parâmetros de creatinina plasmática e ureia, aumentando seus índices, sendo que o mecanismo de ação responsável pela alteração é a nefrotoxicidade.

Outro medicamento que causa uma tanto interferência analítica (in vitro) quanto interferência fisiológica (in vivo) de falso aumento dos índices da ureia e da creatinina plasmática é o aciclovir. Esse fármaco é utilizado no tratamento de infecções agudas causadas por vírus da família herpesviridae, sendo a insuficiência renal reversível pelo mecanismo de ação relacionado com a interferência in vivo, e na interferência in vitro o mecanismo de ação ainda não foi ainda esclarecido.(12)

O ácido ascórbico apresenta uma elevada atividade redutora e é provável que essa redução nos compostos orgânicos possa ser o esclarecimento para as devidas alterações observadas nos testes. Quando presente em amostras biológicas de soro, o ácido ascórbico é capaz de interagir com alguns elementos dos reagentes utilizados para a determinação dos parâmetros de ureia e creatinina plasmática, assim como em outros parâmetros bioquímicos, como: glicemia plasmática e ácido úrico. Portanto, essa interferência analítica pode promover uma liberação errônea de laudos laboratoriais pelos analistas clínicos responsáveis.(3)

De acordo com Martinello e Silva,(9) em suas análises in vitro, o que ocorre é que a atividade redutora da vitamina C promove uma suposta interação com os elementos do teste, porém, não está bem esclarecido sobre qual enzima sofre a devida interação no momento exato das reações. É importante ressaltar que, no trabalho dos autores citados anteriormente, foi utilizada a vitamina C na forma de comprimidos efervescentes (nas análises in vivo) e em gotas (nas análises in vitro), e no presente estudo utilizou-se o ácido ascórbico devidamente purificado. Os autores Martinello e Silva(9) não avaliaram os parâmetros de ureia e creatinina, e sim ácido úrico, bilirrubina, colesterol total, glicose e trigli­cerídeos. O que há de semelhante no trabalho dos autores anteriormente citados e o presente trabalho é que a atividade redutora do ácido ascórbico tenha sido o fator principal na interação com as enzimas dos testes, fazendo assim com que ocorra uma diminuição ou aumento nos parâmetros bioquímicos avaliados.

Segundo Antenor et al.,(13) as interferências in vitro causadas pelo ácido ascórbico foram significativas quando foi utilizada a concentração de 10 mg/dL tanto na avaliação da ureia quanto na determinação da creatinina, porém os autores não avaliaram em concentrações superiores à de 10 mg/dL. No entanto, nesse estudo, as metodo­logias utilizadas para a determinação da ureia foram a quantificada por Berthelot e pela urease UV, e na determinação da creatinina plasmática foram o método cinético e creatinina enzimática. As metodologias utilizadas no presente trabalho para a determinação da ureia e creatinina foram respectivamente: Urease pelo método UV e Creatina enzimática baseada na reação de Jaffé.

Os resultados dos testes do presente estudo mostraram que, aumentando a concentração da vitamina C na amostra de soro, foi notável o aumento também da interferência in vitro tanto nos parâmetros de ureia quanto de creatinina plasmática. De acordo com o procedimento experimental utilizado no presente trabalho, a quantidade mínima de ácido ascórbico suficiente no soro capaz de causar de fato interferência in vitro significativa foi a concentração de 10 mg/dL.

CONCLUSÃO

Considerando os resultados obtidos nesse estudo pode-se sugerir que a vitamina C, quando presente nas amostras biológicas de soro nas concentrações citadas anteriormente (mínima de 10 mg/dL), é responsável por promover interações com os constituintes dos testes nos parâmetros de ureia e creatinina plasmática, porém os mecanismos responsáveis pela devida alteração não foram ainda esclarecidos.

O uso indiscriminado do ácido ascórbico pela população, induzida pelo fato de não ser considerado um medicamento e também levando-se em conta que, para os leigos, o uso abusivo da substância não acarreta efeitos colaterais, está fazendo com que os profissionais responsáveis pela área fiquem atentos principalmente na fase pré-analítica. No presente trabalho, o tema abordado traz de fato uma relevante posição em nível de informação para os analistas clínicos prepararem seus pacientes direto ou indiretamente para coleta nas devidas condições a fim da emissão de laudos laboratoriais fidedignos.

Abstract

Objective: In line with this, the present work aimed to analyze the possible in vitro modifications of serum urea and creatinine biochemical parameters in blood serum samples from healthy volunteers after the presence of high L-ascorbic acid concentrations (5, 10 or 40 mg/dL). Methods: Ascorbic acid was added in vitro to the human serum and the biochemical analytes were assayed up to 1 hour after addition. Serum urea levels were determined by urease activity (UV and colorimetric assay) and serum creatinine levels were analyzed by enzymatic creatinine concentration using colorimetric assay and endpoint reaction. Results: Pool serum with vitamin C at 10 and 40 mg/dL significantly increase the values of determination of urea and creatinine when compared to pool serum control. Together, it is possible to affirm that vitamin C at concentrations equal or up to 10 mg/dL could promote chemical interactions with components from urea or creatinine detection colorimetric assays, leading to false-positive results. Conclusion: In addition, this study provides important information for clinical analysts to be more careful when performing exam procedures and in releasing reports from patients who have ingested high concentrations of vitamin C.

Keywords

Ascorbic acid; Urea; Creatinine

REFERÊNCIAS

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  9. Martinello F, Silva EL. Interferência do ácido ascórbico nas determinações de parâmetros bioquímicos séricos: estudos in vivo e in vitro. J Bras Patol Med Lab. 2003;39(4):323-34.
  10. Labtest. Procedimento operacional padrão para a determinação da ureia em amostras de sangue e urina útil na avaliação da função renal. Minas Gerais; 2012.
  11. Labtest. Procedimento operacional padrão para a determinação da creatinina em soro, plasma e urina por reação de ponto final. Minas Gerais; 2013.
  12. Moura JAP. Interferência de medicamentos em exames laboratoriais. João Pessoa. Monografia [Graduação em Farmácia] – Universidade Federal da Paraíba; 2014.
  13. Antenor HP, Pedrazzi AHP, Rodrigues ER, Filho AZ. Ação Redutora da Vitamina C em Bioquímica Clínica. RBAC. 1998;30(1):5-6.

Correspondência

Helenicy Nogueira Holanda Veras

Avenida Leão Sampaio km 3 – Bairro Lagoa Seca

63040-005 – Juazeiro do Norte – CE, Brasil