Interferência in vivo e in vitro de medicamentos na avaliação da glicemia: uma revisão da literatura

In vivo and in vitro interference of medications in the evaluation of glycemia: a review of the literature

 

Palloma Aline Mello1, Bruna Gabriela Rocha1, William Neves Oliveira1, Thays Santos Mendonça1, Caroline Pereira Domingueti1

 

1  Universidade Federal de São João Del Rei, Campus Centro Oeste. Divinópolis, MG, Brasil.

Recebido em 15/04/2022

Aprovado em 15/06/2022

DOI: 10.21877/2448-3877.202200039

 

INTRODUÇÃO

 

Dentre as doenças crônicas não transmissíveis, o diabetes mellitus (DM) se destaca no âmbito da saúde, com estimativas de que 537 milhões de adultos com idade entre 20 e 79 anos convivam com a doença no mundo, o que representa 10,5% da população mundial nesta faixa etária.(1) Sendo assim, testes laboratoriais são cada vez mais solicitados a fim de monitorar a glicemia dos pacientes portadores da doença ou diagnosticar indivíduos com risco de desenvolvê-la. A avaliação dos níveis plasmáticos de glicose é amplamente empregada para a realização do diagnóstico e monitoramento do DM.(2)

Contudo, alguns medicamentos podem interferir em determinados ensaios laboratoriais de determinação da glicemia, sendo importante reconhecer quais são aqueles que apresentam esta interferência in vitro.(3) Além disso, o aumento da glicemia consiste em uma reação adversa observada em decorrência da utilização de diversos medicamentos. Diante desta possível interferência in vivo, indivíduos que utilizam estes medicamentos cronicamente devem realizar o monitoramento periódico da glicemia.(2-4)

Grande parte da população portadora de DM ainda apresenta comorbidades associadas e, portanto, utiliza outras classes de medicamentos além dos hipoglicemiantes, os quais podem interferir nos níveis glicêmicos e, consequentemente, no controle da glicemia destes pacientes.(5) Portanto, é imprescindível conhecer quais medicamentos apresentam esta interferência in vivo, podendo aumentar ou diminuir os níveis glicêmicos, para a realização de ajustes da dose do hipoglicemiante e/ou evitar o uso de tais medicamentos por pacientes portadores de DM.(3,6)

Diante disto, este trabalho teve como objetivo descrever os principais fármacos que apresentam o potencial de causar interferência in vivo ou in vitro na avaliação laboratorial da glicemia, além de relatar os principais mecanismos responsáveis pela interferência.

 

METODOLOGIA

 

Esta revisão da literatura foi realizada por meio da busca de publicações científicas sobre a interferência in vivo e in vitro de medicamentos em exames laboratoriais de avaliação da glicemia. As palavras-chave “interferência medicamentosa”, “interferências in vivo”, “interferências in vitro”, “glicemia” e “hiperglicemia”, dentre outras, foram empregadas para a busca das publicações científicas nos bancos de dados SciELO, PubMed e Google Acadêmico.

 

MEDICAMENTOS QUE INTERFEREM NA AVALIAÇÃO LABORATORIAL DA GLICEMIA

 

A Tabela 1 apresenta os principais medicamentos que podem interferir nos exames laboratoriais de avaliação da glicemia e os mecanismos in vivo ou in vitro responsáveis pela interferência. A Tabela 2 apresenta os principais fármacos que podem interferir in vitro na dosagem laboratorial da glicemia e o mecanismo responsável pela interferência.

 

Tabela 1

Principais fármacos que podem interferir in vivo na avaliação laboratorial da glicemia e o mecanismo responsável pela interferência

Resposta Classe Terapêutica/Fármaco Mecanismo
Diminuição da glicemia Anti-inflamatórios não esteroidais (Ácido acetilsalicílico, Ibuprofeno)

Anti-hipertensivos inibidores da enzima conversora de angiotensina (Benazepril, Captopril, Cilazapril, Delapril, Enalapril, Fosinopril, Lisinopril, Perindopril, Quinapril, Ramipril, Trandolapril)

Anti-hipertensivos bloqueadores dos receptores de angiotensina (Candesartana, Eprosartana, Ibersatana, Losartana,  Telmisartan, Valsartana)

Fluoroquinolonas (Ciprofloxacino, Delafloxacino, Gatifloxacino, Gemifloxacino, Levofloxacino, Moxifloxacino, Norfloxacino, Ofloxacino)

Antimicrobiano (Sulfametoxazol-Trimetoprim)

Estabilizador de humor (Lítio)

Aumento da secreção de insulina
Anti-hipertensivos inibidores da enzima conversora de angiotensina (Benazepril, Captopril, Cilazapril, Delapril, Enalapril, Fosinopril, Lisinopril, Perindopril, Quinapril, Ramipril, Trandolapril)

Anti-hipertensivos bloqueadores dos receptores de angiotensina (Candesartana, Eprosartana, Ibersatana, Losartana,  Telmisartan, Valsartana)

Anti-hipertensivos bloqueadores dos canais de cálcio (Anlodipino, Diltiazem, Felopidina, Nicardipina, Nifedina, Verapamil)

Estabilizador de humor (Lítio)

Tratamento da hiperuricemia (Alopurinol)

Aumento da sensibilidade à insulina
Aumento da glicemia Hormônio (Levotiroxina) Aumento da absorção intestinal de glicose
Anti-inflamatórios esteroidais (Beclometasona, Dexametasona, Hidrocortisona, Prednisolona, Prednisona)

Anti-hipertensivo (Clonidina, Diazóxido)

Hormônio (Levotiroxina)

Antiepiléptico (Carbamazepina)

Broncodilatadores agonistas beta-adrenérgicos (Fenoterol, Formoterol, Metaproterenol, Salbutamol, Salmeterol, Terbutalina)

Hormônio (hormônio do crescimento)

Aumento da glicogenólise e da gliconeogênese
Anti-inflamatórios esteroidais (Beclometasona, Dexametasona, Hidrocortisona, Prednisolona, Prednisona)

Diuréticos de alça (Bumetamida, Furosemida)

Diuréticos tiazídicos (Clortalidona, Hidroclorotiazida, Indapamida)

Hormônio (Progesterona)

Antiepilépticos (Carbamazepina, Fenitoína)

Antimicrobiano (Isoniazida)

Antidepressivos tricíclicos (Amitriptilina, Clomipramina, Desipramina, Imipramina e Nortriptilina)

Antidepressivos inibidores seletivos da recaptação de serotonina (Citalopram, Escitalopram, Fluoxetina, Fluvoxamina, Paroxetina, Sertralina)

Imunossupressores (Ciclosporina, Tacrolimus)

Opioide (Meperidina)

Antiprotozoário (Pentamidina)

Estatinas (Atorvastatina, Lovastatina, Sinvastatina, Pravastatina, Rosuvastatina)

Antiviral (Interferon alfa)

Redução da secreção de insulina
Antipsicóticos (Amissulprida, Aripiprazol, Clorpromazina, Clozapina, Haloperidol, Olanzapina, Quetiapina, Risperidona)

Anti-inflamatórios esteroidais (Beclometasona, Dexametasona, Hidrocortisona, Prednisolona, Prednisona)

Anti-hipertensivos betabloqueadores (Atenolol, Metoprolol, Propranolol)

Diuréticos de alça (Bumetamida, Furosemida)

Diuréticos tiazídicos (Clortalidona, Hidroclorotiazida, Indapamida)

Anti-hipertensivo (Diazóxido)

Hormônio (Progesterona)

Antimicrobiano (Isoniazida)

Antidepressivos tricíclicos (Amitriptilina, Clomipramina, Desipramina, Imipramina e Nortriptilina)

Antidepressivos inibidores seletivos da recaptação de serotonina (Citalopram, Escitalopram, Fluoxetina, Fluvoxamina, Paroxetina, Sertralina)

Hipolipemiante (Niacina)

Estatinas (Atorvastatina, Lovastatina, Sinvastatina, Pravastatina, Rosuvastatina)

Tratamento do tabagismo (Nicotina)

Antivirais inibidores de protease (Atazanavir, Lipinavir, Ritonavir, Saquivavir)

Hormônio (hormônio do crescimento)

Resistência à insulina

Tabela 2

Principais fármacos que podem interferir in vitro na dosagem laboratorial da glicemia e o mecanismo responsável pela interferência

Resposta Fármaco Mecanismo
Diminuição da glicemia Ácido ascórbico Interfere nos métodos glicose oxidase e sulfato cúprico
Metronidazol Interfere no método hexoquinase
Paracetamol Interfere no método glicose oxidase de glicosímetros
Aumento da glicemia Tetraciclina Interfere nos métodos ortotoluidina e hexoquinase

 

Antipsicóticos

Os antipsicóticos, como clorpromazina, haloperidol, clozapina, olanzapina, quetiapina, risperidona, aripiprazol, amissulprida, são utilizados no tratamento da esquizofrenia e estes fármacos podem provocar como reação adversa o desenvolvimento de obesidade e de diabetes mellitus tipo 2. A obesidade por si só pode predispor ao desenvolvimento de diabetes mellitus tipo 2 em indivíduos suscetíveis. Contudo, como a hiperglicemia tende a melhorar após a interrupção do uso dos antipsicóticos e pode surgir em indivíduos que não apresentam ganho de peso, isto indica que outros mecanismos também possam ser responsáveis pelo aumento da glicemia. Há relatos de que estes fármacos podem causar um aumento da resistência à insulina que já está presente em pacientes com esquizofrenia, resultando em aumento dos níveis séricos de insulina. Além disso, eles podem inibir a captação de glicose pelo tecido muscular.(7)

 

Anti-inflamatórios esteroidais

Os glicocorticoides, como prednisona, prednisolona, dexametasona, beclometasona e hidrocortisona, são utilizados na prática clínica como anti-inflamatórios e imunossupressores. Estes medicamentos são os mais frequentemente associados com o desenvolvimento de hiperglicemia e diabetes mellitus. O uso crônico dos glicocorticoides altera a composição corporal, resultando em acúmulo de gordura na região abdominal, o que leva ao desenvolvimento da resistência à insulina nos tecidos periféricos, a qual é caracterizada pela redução da captação de glicose principalmente no músculo esquelético e no tecido adiposo. Estes fármacos ainda provocam disfunção das células beta, resultando em diminuição da produção e secreção de insulina. Além disso, eles ativam vários genes envolvidos no metabolismo hepático da glicose, acarretando o aumento da gliconeogênese e da glicogenólise.(8)

 

Anti-inflamatórios não esteroidais

O ácido acetilsalicílico apresenta efeitos analgésico, antipirético, anti-inflamatório e antiagregante plaquetário. Em doses elevadas, associa-se à hemoglobina e dá origem à hemoglobina acetilada, podendo alterar os resultados da determinação da HbA1c.(1) Além disso, os salicilatos podem inibir a síntese de prostaglandinas nas células beta pancreáticas, o que pode estar relacionado com o aumento da secreção de insulina e desenvolvimento de hipoglicemia.(9)

O ibuprofeno é utilizado como anti-inflamatório, antipirético e analgésico e pode causar hipoglicemia quando usado em associação com fármacos hipoglicemiantes.(10) Este fármaco inibe a secreção de prostaglandina E, o que resulta em aumento da secreção de insulina.(11)

O paracetamol apresenta ação analgésica e antipirética, sendo que sua atividade anti-inflamatória é baixa.(12) O medicamento interfere na interpretação de glicosímetros amperométricos ou fotométricos que empregam o método de glicose oxidase, diminuindo os valores glicêmicos.(13)

 

Anti-hipertensivos

Os betabloqueadores são anti-hipertensivos que atuam diminuindo o débito cardíaco. Estes fármacos podem causar intolerância à glicose e hiperglicemia, efeito este que pode ser aumentado quando utilizados em combinação com diuréticos de alça ou tiazídicos. Este efeito é mais pronunciado com os betabloqueadores de primeira e segunda geração, como propranolol, metoprolol e atenolol, do que com os de terceira geração, como carvedilol, bisoprolol e bucindolol. Os beta-bloqueadores de terceira geração, em geral, não alteram a glicemia devido ao efeito vasodilatador, o qual potencializa a captação de glicose pelos tecidos periféricos.(14)

Os diuréticos de alça, como furosemida, bumetamida, e os diuréticos tiazídicos, como hidroclorotiazida, clortalidona e indapamida, consistem na classe mais utilizada de anti-hipertensivos, devido à eficácia terapêutica associada ao baixo custo.(15) Contudo, eles apresentam como reação adversa algumas alterações metabólicas, como hiperglicemia e intolerância à glicose. O mecanismo pelo qual os diuréticos interferem na intolerância à glicose não está totalmente elucidado, mas pode relacionar-se ao comprometimento da liberação de insulina e alterações no metabolismo de carboidratos. Além disso, o uso dos diuréticos de alça e tiazídicos está associado com o desenvolvimento de hipocalemia, hipomagnesemia e hiponatremia. O potássio está associado à liberação de insulina e o magnésio regula a atuação do hormônio, captação da glicose estimulada pela insulina e tônus vascular. Portanto, a perda de magnésio prejudica a ação da tirosina quinase no receptor do hormônio, compromete a atividade da insulina no organismo e beneficia o desenvolvimento da intolerância à glicose.(16)

O diazóxido é empregado no tratamento da hipertensão arterial maligna. Este fármaco é capaz de reduzir a secreção de insulina e aumentar a secreção de adrenalina, resultando em hiperglicemia. Além disso, ele pode diretamente estimular a produção hepática de glicose e inibir a captação de glicose pelas células.(17) A hiperglicemia induzida pela clonidina, por sua vez, ocorre por meio do estímulo aos receptores alfa-2 adrenérgicos no sistema nervoso central e também por aumento da gliconeogênese hepática.(18)

Os inibidores da enzima conversora de angiotensina (IECA), como enalapril, captopril, lisinopril, benazepril, fosinopril, cilazapril, ramipril, quinapril, perindopril, trandolapril e delapril, e os bloqueadores dos receptores de angiotensina (BRA), como losartana, candesartana, eprosartana, ibersatana, telmisartan e valsartana, aumentam a sensibilidade à insulina, podendo contribuir para a melhora do controle glicêmico e até mesmo causar hipoglicemia em pacientes com diabetes mellitus.(19,20) Uma possível explicação para este efeito consiste no aumento do fluxo sanguíneo em decorrência da elevação dos níveis de cininas, o que resulta em maior liberação de insulina e em aumento da captação de glicose pelas células.(21) Devido a este aumento da sensibilidade à insulina, estes medicamentos tendem a reduzir o risco de desenvolvimento de diabetes mellitus nos pacientes hipertensos não diabéticos que os utilizam.(22)

Os bloqueadores dos canais de cálcio, tais como nifedina, anlodipino, nicardipina, felopidina, verapamil e diltiazem, também podem aumentar a sensibilidade à insulina e reduzir a glicemia, contribuindo a melhora do controle glicêmico em pacientes diabéticos e ainda podem reduzir o risco de desenvolvimento de diabetes mellitus nos indivíduos que não apresentam a doença.(23,24)

 

Hormônios

Os medicamentos hormonais à base de progesterona, incluindo o uso prolongado de anticoncepcionais orais que apresentam altas dose de progestógenos, podem promover resistência à insulina e redução da secreção de insulina, resultando em aumento dos níveis séricos de glicose.(14, 25)

A levotiroxina repõe sinteticamente o hormônio tireoidiano tiroxina em pacientes que apresentam hipotireoidismo. Este fármaco estimula a absorção intestinal de glicose e promove um aumento da expressão de receptores de catecolaminas, resultando em aumento da glicogenólise. Além disso, a levotiroxina estimula a síntese hepática de glicose a partir do lactato e do glicerol, resultando em hiperglicemia.(26)

O hormônio do crescimento é empregado no tratamento de distúrbios associados com deficiência na sua produção. A administração deste hormônio pode diminuir a captação de glicose pelos músculos, causando resistência à insulina e estimular a gliconeogênese e a glicogenólise, resultando em hiperglicemia.(27)

 

Antiepiléticos

A carbamazepina é um medicamento bastante utilizado no tratamento da epilepsia, sendo relativamente frequente a superdosagem associada ao seu uso, a qual pode acarretar várias reações adversas, dentre as quais a hiperglicemia. O mecanismo responsável pela hiperglicemia consiste no aumento da gliconeogênese e redução da produção de insulina pelo pâncreas.(28)

A fenitoína é capaz de provocar hiperglicemia em indivíduos diabéticos e não diabéticos, por reduzir a secreção de insulina e causar intolerância à glicose.(29) Este fármaco ainda pode diminuir o efeito hipoglicemiante das sulfonilureias, comprometendo o controle glicêmico dos pacientes com diabetes mellitus que utilizam ambos os medicamentos.(30)

 

Antimicrobianos

O uso concomitante das fluoroquinolonas, tais como ciprofloxacino, levofloxacino, norfloxacino, ofloxacino, delafloxacino, moxifloxacino, gemifloxacino e gatifloxacino, com os hipoglicemiantes sulfonilureias pode causar hipoglicemia em pacientes com diabetes mellitus.(31) As fluoroquinolonas podem se ligar aos canais de potássio sensíveis à adenosina trifosfato (ATP), agindo de modo semelhante aos hipoglicemiantes secretagogos de insulina, estimulando diretamente a secreção de insulina pelo pâncreas.(32)

A isoniazida é utilizada no esquema terapêutico contra a tuberculose. A tuberculose pode deprimir a tolerância à glicose de forma temporária, sendo que a hiperglicemia ocorre devido à inflamação induzida no decorrer da doença. Este fármaco pode antagonizar o efeito das sulfonilureias, prejudicando o controle glicêmico de pacientes diabéticos, como também pode comprometer a secreção e ação da insulina, resultando em hiperglicemia em indivíduos não diabéticos.(33)

As tetraciclinas interferem in vitro nos exames laboratoriais de determinação de glicemia que empregam o método da ortotoluidina (em que uma amina aromática interage com o aldeído presente na molécula de glicose em meio ácido em alta temperatura, formando glicosilamina e base de Schiff) e o método da hexoquinase (em que a molécula de glicose é fosforilada através do ATP pela atuação da enzima formando glicose-6-fosfato, então este produto é convertido em 6-fosfogliconolactona pela ação da glicose-6-fosfato-desidrogenas e utilizando NADP+ que se converterá em NADP).(34)

O sulfametoxazol-trimetoprim, por outro lado, pode causar hipoglicemia quando associado aos hipoglicemiantes utilizados no tratamento do diabetes mellitus. O mecanismo sugerido para este efeito se baseia no fato de que este fármaco pertence ao grupo das sulfonamidas, apresentando estrutura química semelhante às sulfonilureias, de modo que ele pode se ligar aos receptores das células beta pancreáticas e estimular a secreção de insulina.(35)

 

Antidepressivos

Os antidepressivos tricíclicos, como amitriptilina, clomipramina, desipramina, imipramina e nortriptilina, e os antidepressivos inibidores seletivos da recaptação de serotonina, como fluoxetina, citalopram, paroxetina, sertralina, fluvoxamina e escitalopram podem causar como reação adversa o aumento da glicemia e o desenvolvimento de diabetes mellitus. O aumento da liberação de serotonina pode estar relacionado com a alteração na regulação da glicemia e no aumento do risco para o desenvolvimento do diabetes mellitus. Além disso, o uso dos antidepressivos tem sido associado com aumento dos níveis séricos de cortisol, o que pode acarretar resistência à insulina e hiperglicemia. Alguns antidepressivos ainda podem causar ganho de peso, o que está associado a um maior risco para desenvolvimento de diabetes mellitus. Estes fármacos apresentam também afinidade para os receptores de acetilcolina muscarínicos do tipo M3, os quais desempenham um papel importante na regulação da secreção de insulina, podendo comprometer a secreção deste hormônio.(36)

 

Imunossupressores

A ciclosporina e o tacrolimus são medicamentos imunossupressores utilizados em pacientes que receberam transplantes de órgãos, para evitar a rejeição do órgão transplantado. Estes fármacos reduzem a expressão do gene que codifica a insulina no pâncreas, resultando em diminuição da produção e secreção de insulina, levando ao aumento da glicemia e ao aumento do risco para o desenvolvimento do diabetes mellitus.(37)

 

Estabilizador de humor

O lítio é utilizado no tratamento do transtorno do humor bipolar, a fim de estabilizar o humor do paciente. Este fármaco é capaz de aumentar a sensibilidade dos tecidos periféricos à ação da insulina, promovendo um aumento da captação de glicose pelas células. Além disso, o lítio estimula a produção e a secreção de insulina pelas células beta pancreáticas e a glicogênese hepática e reduz a hiperglicemia pós-prandial, podendo auxiliar no controle glicêmico de pacientes com diabetes mellitus.(38)

 

Vitamina C

O uso de ácido ascórbico (vitamina C) interfere in vitro nos métodos da glicose oxidase e do sulfato cúprico, os quais empregam o processo de oxirredução para dosagem da glicemia. Como o ácido ascórbico é um medicamento altamente redutor, ele compete com o consumo de peróxido de oxigênio na reação, fornecendo valores falsamente diminuídos de glicose. Por este motivo, é recomendado suspender o uso deste medicamento pelo menos 12 horas antes da coleta da amostra.(39)

 

Antiprotozoário

O metronidazol é empregado no tratamento da tricomoníase, amebíase, giardíase, vaginites e infecções causadas por bactérias anaeróbicas.(40) O medicamento interfere no resultado de exames clínicos que apresentam reações enzimáticas de oxirredução da nicotinamida adenina dinucleotídeo (NAD/NADH), como o método da glicose hexoquinase. A alteração é decorrente da semelhança dos picos de absorvância da substância e do NADH em pH neutro. O resultado desta interferência é a diminuição dos valores de glicemia da amostra.(41)

A pentamidina é utilizada no tratamento da leishmaniose e da tripanossomíase e pode causar destruição nas células beta pancreáticas, resultando em deficiência na secreção de insulina e em hiperglicemia severa, e no desenvolvimento de diabetes mellitus dependente de insulinoterapia.(42)

 

Hipolipemiante

As estatinas, como sinvastatina, atorvastatina, lovastatina, pravastatina e rosuvastatina, são amplamente empregadas no tratamento da hipercolesterolemia com o objetivo de reduzir o risco cardiovascular. Contudo, este fármaco pode provocar o surgimento de intolerância à glicose e o aumento do risco de desenvolvimento de diabetes mellitus. O mecanismo responsável pelo aumento da glicemia envolve a inibição da produção de receptores GLUT4 nos adipócitos e a disfunção mitocondrial no tecido muscular esquelético, resultando em diminuição da captação de glicose pelos tecidos adiposo e muscular e, consequentemente, no aumento da resistência à insulina. Além disso, as estatinas podem promover uma redução da secreção de insulina pelas células beta pancreáticas, resultando em hiperglicemia.(43)

A niacina também tem sido utilizada no tratamento das dislipidemias, já que ela é capaz de promover aumento dos níveis de colesterol HDL e redução dos níveis de colesterol LDL, triglicérides e lipoproteína (a). Contudo, este fármaco pode causar como reação adversa o desenvolvimento de resistência à insulina e hiperglicemia.(44)

 

Tratamento da hiperuricemia

A hiperuricemia predispõe à obesidade abdominal e ao desenvolvimento de resistência periférica à insulina e diabetes mellitus. O alopurinol, por sua vez, reduz os níveis séricos de ácido úrico e, consequentemente, pode contribuir para reduzir a glicemia em pacientes com diabetes mellitus.(45)

 

Tratamento do tabagismo

A nicotina presente em medicamentos utilizados no tratamento do tabagismo favorece a resistência periférica à insulina por ser capaz de estimular reações inflamatórias que, consequentemente, provocam estresse oxidativo nas células através da produção de espécies reativas de oxigênio. Este processo ativa fatores de transcrição responsáveis pela síntese de citocinas pró-inflamatórias que desencadeiam a resistência à insulina.(46)

 

Broncodilatadores

Os agonistas beta-adrenérgicos, como fenoterol, formoterol, salbutamol, salmeterol, metaproterenol e terbutalina possuem ação broncodilatadora e são utilizados no tratamento da asma. Estes medicamentos estimulam a gliconeogênese e a glicogenólise, principalmente quando administrados por nebulização, podendo causar aumento da glicemia.(47)

 

Antivirais

Os inibidores de protease, como ritonavir, lipinavir, saquinavir e atazanavir são amplamente utilizados no tratamento da infecção pelo HIV. Contudo, eles podem causar como reação adversa o aumento da glicemia, pois promovem o acúmulo de gordura da região abdominal e o surgimento de resistência à insulina.(48)

O interferon alfa tem sido utilizado no tratamento das hepatites B e C crônicas. Este fármaco pode causar uma resposta autoimune no organismo, na qual ocorre a produção de autoanticorpos antiácido glutâmico descarboxilase (anti-GAD), resultando na destruição das células beta pancreáticas e comprometendo a secreção de insulina. Por meio deste mecanismo, o interferon alfa pode causar como reação adversa o desenvolvimento de diabetes mellitus tipo 1.(49)

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Vários medicamentos podem causar como reação adversa o desenvolvimento de hiperglicemia e DM, sendo essencial o monitoramento da glicemia dos indivíduos que utilizam estes medicamentos. Alguns medicamentos também podem provocar uma redução in vivo dos níveis de glicemia, principalmente quando utilizados em associação com medicamentos hipoglicemiantes. Deste modo, o conhecimento dos medicamentos que podem alterar in vivo os níveis glicêmicos é fundamental durante o acompanhamento de pacientes que apresentam DM para a realização de ajustes da dose dos hipoglicemiantes. Os medicamentos tetraciclina, metronidazol, ácido ascórbico e paracetamol também podem causar interferência in vitro na dosagem laboratorial da glicemia. A complexidade da interferência medicamentosa em exames laboratoriais para o diagnóstico e o monitoramento do DM reforça a necessidade de os profissionais da área da saúde estarem atentos a essas possíveis interferências, a fim de minimizar ou evitar erros de interpretação de laudos.

 

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    Correspondência

    Caroline Pereira Domingueti

    E-mail: [email protected]