Utilização de testes fenotípicos para a pesquisa de carbapenamases em enterobactérias: uma ferramenta para orientação clínica

The use of phenotypic tests for the research of carbapenamases in enterobacteria: a tool for clinical orientation

 

Jaime Antonio Abrantes1

Joseli Maria da Rocha Nogueira2

 

 

1Mestre. Instituto Nacional de Cardiologia – MS, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

2Doutorado. Chefe do Laboratório de Microbiologia – ENSP – Fiocruz – Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

 

Instituição: Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca – ENSP/Fiocruz – Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

 

Artigo recebido em 09/08/2017

Artigo aprovado em 04/09/2017

DOI: 10.21877/2448-3877.201700607

 

 

Resumo

O aumento da resistência antimicrobiana é considerado, segundo a OMS, como um dos principais problemas da atualidade, sendo observado o aumento alarmante, nos últimos anos, da circulação de cepas com perfil de multirresistência, especialmente aos antimicrobianos de última geração, incluindo Ceftriaxona e Cefepime (cefalosporina de 3ª e 4ª geração) e Carbapenêmicos (Imipenem, Meropenem e Ertapenem) utilizados como prática no tratamento de diversas infecções. No entanto, esta prática vem favorecendo a seleção de microrganismos resistentes a estes fármacos, através de diversos mecanismos, incluindo a aquisição de b-lactamases de espectro estendido ou genes de resistência localizados em elementos móveis, que, consequentemente, resultam em falhas terapêuticas no tratamento empírico de infecções invasivas. A combinação entre estes fatores favorece a seleção de microrganismos com perfil MDR (Multidrug Resistance), facilitando a implantação e disseminação destes microrganismos em diferentes ambientes, tanto comunitários quanto nosocomiais, que podem resultar em infecções graves de difícil controle e tratamento clínico limitado.

 

Palavras-chave

Carbapenemase; KPC; NDM; Metalobetalactamases

 

 

INTRODUÇÃO

 

A resistência bacteriana aos antimicrobianos é um grande desafio no tratamento de infecções causadas por determinados microrganismos, pois muitas vezes as opções de fármacos são mínimas.(1,2) As enterobactérias podem apresentar muitos mecanismos de resistência que variam desde deficiência de porinas até a produção de enzimas capazes de inativar a ação de drogas antimicrobianas, como exemplo as beta-lactamases. Atualmente são descritas aproximadamente 35 enzimas beta-lactamases distintas, das quais algumas, como as carbapenemases, têm apresentado maior relevância, tendo em vista sua distribuição clonal e o impacto que vem sendo observado pela falha no tratamento de infecções por estes microrganismos.(3)

As carbapenemases são enzimas que atribuem às bactérias resistência aos antimicrobianos carbapenêmicos. A emergência das bactérias produtoras de carbapenemase gera um grande problema de saúde pública no Brasil e no mundo. As infecções por enterobactérias que contêm este tipo de enzima aumentam a taxa de mortalidade dos pacientes acometidos, pela dificuldade no tratamento, já que existem poucas alternativas eficazes na eliminação e controle destas infecções.(4)

Existem vários tipos de carbapenemases que são transmitidos de um organismo a outro através de mecanismos de trocas genéticas que acontecem no ambiente, incluindo a transferência de elementos genéticos móveis. A globalização certamente contribui para a disseminação de microrganismos que carregam características de resistência, pois podem ser disseminados através da migração de pessoas entre países, que acabam por transportar de um hemisfério a outro microrganismos portadores destas enzimas. Apesar da influência dos hábitos alimentares, importação de animais de produção e plantas ornamentais terem influência na disseminação destes microrganismos, a presença de cada um dos tipos de carbapenemases em microrganismos responsáveis por infecções e colonizações pelo mundo ainda é distribuída de forma que cada região ou continente tenha um tipo prevalente.(3) Nesse cenário torna-se imprescindível conhecer as metodologias aplicadas ao diagnóstico, permitindo a interpretação correta e rápida e o reconhecimento dos mecanismos de resistência envolvidos, assim como a prática de prevenção para evitar a disseminação destes microrganismos e restringir o uso de antimicrobianos, utilizando-os de maneira adequada.(5)

 

Material e métodos

 

Este artigo de revisão compõe-se de pesquisa bibliográfica, que fundamentou sua base teórica por meio de livros, guidelines utilizados por profissionais da área, como o Clinical & Laboratory Standards Institute (CLSI), que é o órgão internacional americano responsável pelas recomendações e padronização das etapas para a realização do Teste de Sensibilidade aos Antimicrobianos e estabelece os pontos de corte para a interpretação dos resultados, e o European Committee on Antimicrobial Susceptibility Testing (EUCAST), que é o comitê europeu e apresenta alguns padrões não contemplados pelo comitê americano. Foram utilizados trabalhos científicos com dados recentes obtidos através da ferramenta de busca PubMed, utilizando as palavras-chave carbapenemases, b-lactamases, infecções bacterianas e multirresistência como descritores, para caracterizar as carbapenemases e seu diagnóstico labora­torial de acordo com o cenário mundial no período de 2010 a 2014.

 

Carbapenemases

 

A produção de enzimas beta-lactamases tem sido relatada como um importante mecanismo bacteriano de resistência a antibióticos beta-lactâmicos, já que, hidrolisando o anel beta-lactâmico pela quebra da ligação amida, o antimicrobiano perde a capacidade de inibir a síntese da parede celular bacteriana.(6)

Determinados microrganismos, como as entero­bac­térias, podem apresentar como mecanismo de resistência a produção de beta-lactamase do tipo denominado “carba­penemase” quando há a capacidade enzimática do microrganismo de hidrolisar um antimicrobiano beta-lactâmico da classe dos carbapenêmicos e outros beta-lactâmicos, reduzindo sua ação bactericida. Sendo assim, uma carbape­nemase é um tipo específico de beta-lactamase.(7) Foram descritos inúmeros tipos de beta-lactamases, com base em diversos critérios de classificação, porém existem duas classificações que são mais difundidas e utilizadas pela comunidade científica: a classificação de Ambler e a de Bush-Jacoby-Medeiros.(8,9)

A classificação de Ambler foi baseada na sequência de aminoácidos, agrupando em classes de acordo com a estrutura molecular das beta-lactamases. Neste estudo foram propostas quatro classes distintas: A, B, C e D.(8) Outra classificação, sugerida por Bush em 1989, foi baseada na correlação entre o substrato e as propriedades inibitórias da enzima.(10) Anos depois, esta classificação foi atualizada com a introdução de características estruturais junto aos critérios anteriores, dividindo-se em quatro grupos: 1, 2, 3, 4. Embora sejam quatro grupos, o grupo 2 se subdivide em oito outros grupos e o grupo 3 em mais outros três.(9) Para o estudo das carbapenemases consideramos as duas classificações, pois se complementam.

Entre as enterobactérias produtoras de carbapene­mases, a Klebsiella pneumoniae e Escherichia coli estão entre as mais relatadas em relação à presença deste mecanismo.(3) Enterobactérias do gênero Enterobacter, Citro­bacter, Providencia e Proteus são reportadas, porém com menos frequência e apresentam resistência aos antimicro­bianos como Ceftriaxona e Cefepime (cefalosporina de 3ª e 4ª geração) e Carbapenêmicos (Imipenem, Meropenem e Ertapenem).(11,12)

 

Classificação das carbapenemases

 

Na Classe A de Ambler estão alocadas as beta-lactamases de espectro estendido (ESBL), que são inibidas pelo ácido clavulânico. Conferem resistência a várias cefalosporinas de amplo espectro e estão no grupo 2 de Bush-Jacoby-Medeiros. Já as carbapenemases deste grupo, pertencentes ao subgrupo 2f, são serino-carbape­nemases, pois têm uma serina como seu principal resíduo catalítico, localizada no seu sítio ativo, e contêm os tipos KPC (Klebsiella pneumoniae Carbapenemase), NMC (Não Metalo carbapenemase), IMI (Imipenem hydrolyzing carba­penemase), SME (Serratia marcescens enzyme) e GES (Guiana extended spectrum).(8,9) Os vários tipos de carbape­nemases de classe A começaram a ser notificados a partir de 1982 (SME), 1984 (IMI), 1990 (NMC), 1996 (KPC) e 2000 (GES).(13) As GES, carbapenemases da classe A, têm sua capacidade hidrolítica aumentada dependendo do seu subtipo GES-1/2/3/4/5.(14,15)

Já na Classe B estão as Metalobetalactamases (MBLs), que, além de resistentes aos beta-lactâmicos, são resistentes também aos inibidores de beta-lactamases, porém, são inibidas pelo ácido etilenodiaminotetracético (EDTA). Nesta classe de carbapenemase podemos encontrar as Metalobetalactamases dos subtipos SPM (São Paulo Metalobetalactamase), GIM (German Imipenemase), VIM (Verona Imipenemase), IMP (Imipenemase), AIM (Australian Imipenemase) e NDM (New Deli Metalo­betalactamases).(13,16) Essas últimas, relata-das inicialmente em 2006, na Índia, são carbapenemases de classe B, em que ainda estão sendo detectadas novas variantes.(17) A NDM-1, foi a primeira a ser descrita, e, assim como as outras MBLs, é zinco dependente.(16) Até bem pouco tempo atrás, o subtipo NDM vinha sendo identificado somente em pacientes que tiveram alguma relação com a região geográfica da Índia e Paquistão, porém, na atualidade, já foram isolados na América do Sul de pacientes não contactantes com esses países.(5,18,19)

Na Classe C, também classificada como grupo funcional 1, estão as cefalosporinases cromossomiais ou AmpC (Adenosina monofosfato cíclico), que por si só não conferem resistência aos carbapenêmicos.(9) Entretanto, quando associadas à deficiência de porinas, podem promover redução da sensibilidade e até a resistência a esses antimi­crobianos.(5) É possível a mediação plasmidial de AmpC, inclusive em enterobactérias.(20)

E, por último, na Classe D encontramos as Oxacili­nases, que pertencem ao subgrupo funcional 2d. Elas hidro­lisam as oxacilinas, oximinocefalosporinas e carbapenê­micos.(9) Assim como as carbapenemases da classe A, as de classe D apresentam serino-enzimas.(14) Em entero­bactérias, as carbapenemases de classe D mais conhecidas são do subtipo OXA-48, o qual, apesar de não ser prevalente no Brasil, já está difundido em outros países.(5,21) As Oxacilinases podem estar associadas a outros mecanismos de beta-lactamases, como CTX-M.(22) Além do OXA-48 existem muitos outros subtipos, como OXA-23, OXA-146, OXA-40, OXA-58, OXA-24 e OXA-40, geralmente encontrados em bactérias não fermentadoras.(23) As diferenças entre elas são estruturais e acabam refletindo em níveis maiores ou menores de resistência.(24)

 

Diagnóstico laboratorial

 

É importante que se verifique a concentração inibitória mínima (CIM) dos carbapenêmicos em cepas não sensíveis a estes antimicrobianos, como também das polimi­xinas e tigeciclina para indicar a melhor terapêutica com base na dose mais precisa de antimicrobiano, pois pelo método de Kirby-Bauer (disco-difusão) temos apenas o critério inter­pretativo de resistente, intermediário e sensível.(5)

Em enterobactérias produtoras de carbapenemases, a presença da enzima é suficiente para hidrolisar os carba­penêmicos e reduzir a sensibilidade desta classe no TSA, sendo o ertapenem o primeiro carbapenêmico a apresentar resistência, pois é o marcador mais sensível para este mecanismo de resistência.(25) É recomendado, pela Anvisa,(5) que em enterobactérias sejam testados os três carbapenê­micos disponíveis em nosso país: o imipenem, o merope­nem e o ertapenem, pois se o resultado do teste indicar perfil intermediário ou resistente para qualquer um destes antimicrobianos, é sugestivo que o mesmo seja mediado pela produção de enzima carbapenemase.

As cepas caracterizadas como metalobeta­lacta­mases apresentam resistência a 90% das drogas utilizadas como escolha no tratamento empírico das infecções. O mapa genético mediado por plasmídeo de resistência em cepas caracterizadas como KPC apresenta resistência múltipla não só para beta-lactâmicos, mas também tal resistência está associada com outras classe de antimi­crobianos, como aminoglicosídeos, macrolídeos, fluoro­quinolonas.(26)

No entanto, a não sensibilidade aos carbapenêmicos não é regra para a presença de carbapenemases, pois a presença de beta-lactamases do tipo ESBL e AmpC associadas ou não à deficiência de porinas pode causar CIMs elevadas destes antimicrobianos.(5,22)

 

Testes fenotípicos

 

Os testes fenotípicos são, ainda hoje, utilizados pela maioria dos hospitais e laboratórios em todo o mundo por serem métodos de baixo custo e de simples realização, permitindo a prática de estratégias de rotina para a busca de carbapenemases.(12) Aqui no Brasil, alguns destes testes são padronizados pelo CLSI(27) e recomendados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)(5) como técnica de triagem diagnóstica, ressaltando que o diagnóstico final do mecanismo de resistência só pode ser obtido através de testes moleculares.

Tais testes são necessários tendo em vista que algumas vezes a avaliação molecular pode detectar a presença de genes de resistência, mas o mesmo não é expressado fenotipicamente.(12) As amostras suspeitas de carbapene­mases através da resistência aos carbapenêmicos e/ou testes fenotípicos positivos devem ser enviadas ao Laboratório Central de Saúde Pública do estado para confirmação e análise molecular.(5)

Os testes de potencialização ou inibição da sensibilidade são realizados observando-se a diferença entre os halos produzidos em Müeller Hinton com os discos de carba­penêmicos puros (meropenem, ertapenem e imipenem) em comparação aos discos dos mesmos carbapenêmicos impregnados com alguma substância inibidora ou poten­cializadora.(1) A maioria dos testes fenotípicos, como a inibição com bloqueadores impregnados em disco, não é eficaz na triagem de carbapenemases de classe D.(12)

No Brasil, esta triagem é separada entre enterobac­térias pertencentes ao grupo CESP (Citrobacter freundii, Enterobacter spp., Serratia spp., Providencia spp., Morganella morganii e Hafnia alvei) e as não pertencentes a esse grupo. Esta divisão se deve à falsa positividade do teste para a detecção de KPC neste grupo.(5) Portanto, a realização do teste fenotípico para Metalobetalactamases pode ser indicada para ambos os grupos, especialmente para os microrganismos que apresentam fenótipo de resistência a carbapenêmicos, os quais podem estar associados à resistência a outras classes de antimicrobianos.

Discos de carbapenêmicos, meropenem e imipenem puros e impregnados com ácido fenilborônico (AFB) são utilizados para a detecção fenotípica de carbapenemases de classe A, principalmente do subtipo KPC.(1,28,29) Um teste positivo é encontrado quando há diferença de ³ 5 mm entre os discos não impregnados em relação aos mesmos discos com ácido fenilborônico. Nesse teste, o ácido fenil­bo­rônico realiza o bloqueio enzimático deste tipo de carba­penemase.(5)

De maneira semelhante ao teste de inibição com AFB, a inibição feita com EDTA junto aos carbapenêmicos resulta em um aumento de 5 mm ou mais em relação aos mesmos antimicrobianos puros, caso o teste seja positivo. A substância potencializadora, o EDTA, não sofre influência de outras beta-lactamases. Em um teste positivo, observamos o bloqueio enzimático das Metalobetalactamases, funcionando como um quelante de zinco.(5,30)

Para a triagem de outros mecanismos que possam conferir resistência bacteriana a carbapenêmicos e que não sejam uma carbapenemase, como produção de ESBL e AmpC, é utilizada a cloxacilina, que inibe as transpeptidases e carbopeptidases, impedindo a síntese da parede celular bacteriana e é resistente ao efeito da penicilinase. Discos de carbapenêmicos impregnados com cloxacilina e outros somente com os carbape-nêmicos são testados. O teste positivo se caracteriza pela potencialização da resistência, ou seja, o diâmetro do halo será menor com a cloxacilina, com diferença de 5 mm ou mais em relação ao carba­penêmico puro. Além disso, o teste com AFB também se encontra positivo no caso de AmpC plasmidial.(5,12)

 

Conclusão

 

A identificação de mecanismos de resistência, além do perfil de sensibilidade aos antimicrobianos, é muito importante para nortear o tratamento clínico, pois sua detecção minimiza a possibilidade de falhas terapêuticas.

Os métodos fenotípicos aqui descritos, apesar de não serem a metodologia mais moderna e nem definitiva, como as análises moleculares para diagnóstico final das carbape­nemases, podem contribuir de forma muito positiva e econômica no âmbito laboratorial, orientando assim a antibio­ticoterapia adequada e auxiliando indiscutivelmente na luta contra a resistência bacteriana.

 

Abstract

Increase in antimicrobial resistance is considered, according to the WHO, to be one of the main problems in present time, with an alarming increase in recent years in the circulation of strains with a multiresistant profile especially to the latest generation antimicrobials, including Ceftriaxone and Cefepime (cephalosporin of 3rd and 4th generation) and Carbapenems (Imipenem, Meropenem and Ertapenem) used as a practice in the treatment of several infections. However, this practice has favored the selection of microorganisms resistant to these drugs, through several mechanisms, including the acquisition of extended-spectrum b-lactamases or resistance genes located in mobile elements, which consequently results in therapeutic failures in the treatment of Invasive infections. The combination of these factors favors the selection of MDR (Multidrug Resistance) microorganisms, facilitating the implantation and dissemination of these microorganisms in different environments, both communitarian and nosocomial, that can result in severe infections of difficult control and limited clinical treatment.

 

Keywords

Carbapenemase; KPC; NDM; Metallo-beta-lactamase

 

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Correspondência

Jaime Antonio Abrantes

  1. Leopoldo Bulhões, 1480

Antiga escola politécnica, sala 21ª – Manguinhos

21041-210 – Rio de Janeiro – RJ, Brasil