Personagem da História da Saúde VIII: Rudolf Virchow

Rudolf Ludwig Karl Virchow nasceu na cidade alemã de Schievelbein, ao sul de Köslin, numa área rural da Pomerânia Oriental, em 1821. Ele foi o único filho de Carl Christian Siegfried Virchow e Johanna Maria Hesse. De família modesta, o pai trabalhava como fazendeiro, comerciante e tesoureiro. Virchow realizou seus estudos elementares na escola paroquial de sua cidade natal. Posteriormente, em 1838, em Köslin, concluiu sua formação básica aos 17 anos. No ginásio, seguiu o programa clássico de estudos, mas tinha grande interesse pelas ciências naturais, história e geografia. Virchow também teve uma sólida formação humanística e era versado em grego, latim e francês.

Ao término dos estudos ginasiais, em Köslin, Virchow seguiu para o “Real Instituto de Medicina e Cirurgia Militar Friedrich-Wilhelms”, em Berlim, formando-se, em 1843, como médico militar, tendo defendido a tese intitulada “Alteração da Córnea na Doença Reumática” (De Rheumate Praesertim Corneae). No período em que ainda era estudante universitário, teve a oportunidade de trabalhar com Johannes Peter Müller (1801-1858) e Johann Lukas Schönlein (1793-1864), entrando em contato com diferentes métodos de diagnósticos tanto clínicos quanto laboratoriais e experimentais, além de estudar epidemiologia.

qEm 1844, tornou-se assistente de anatomia patológica de Robert Friedrich von Froriep (1804-1861), famoso anatomista e curador do Museu de Patologia do Hospital Charité de Berlim.  Em 1945, publicou um tratado sobre trombose e embolia, descrevendo um dos primeiros casos de leucemia. Na verdade, os termos trombose e embolia foram introduzidos na literatura médica por ele. No ano de 1846, foi nomeado como anatomista no mesmo Hospital. Nesse mesmo ano, sob os auspícios do Alto Comis­sariado Civil e Militar Prussiano, foi enviado a Praga e a Viena para avaliar os programas de patologia lá desenvolvidos. Uma das consequências dessas viagens foi o fortalecimento do seu posicionamento contrário ao dogmatismo médico e científico e à crença na teoria dos humores, que vigiam ainda nessas regiões e na própria Alemanha.

Em 1846, descontente com os editores dos jornais médicos, Virchow decidiu fundar, com seu amigo Brenno Ernst Heinrich Reinhardt (1819-1852), o Archiv für Pathologische, Anatomie und Physiologie und für Klinische Medizin, que se tornou um dos mais importantes jornais científicos da Europa. Com o falecimento de Reinhardt, em 1852, ele continuou editando o jornal como único responsável. Posteriormente, esse jornal passou a ser denominado de Virchows Archiv, como ainda é conhecido atualmente.

Em 1847, recebeu um convite para substituir Froriep, que havia sido indicado para o cargo de diretor do Serviço Estatal para a Industrialização Alemã, bem como foi também indicado para assumir como professor (Privatdozent) na Universidade de Berlim sob a chefia de Johannes Peter Müller. Ao assumir como docente, Virchow abriu aos estudantes de medicina a possibilidade de autopsiar os pacientes que iam a óbito, ensinando-lhes os protocolos desenvolvidos por ele.

Em 1848, o Governo da Prússia o enviou para investigar um surto de tifo na Silésia Superior. Ao visitar a região por três semanas, Virchow entrou em contato com a precariedade, abandono e pobreza da população, composta primariamente por poloneses. Essa dura realidade produziu nele um forte impacto, levando ao recrudescimento de suas crenças liberais acerca das questões sociais e políticas. Em seu relatório para o Governo Prussiano, propôs, além das recomendações humanitárias, médicas e higiênico-sanitárias, liberdade política, justiça social e reformas econômicas e educacionais para a região, a fim de melhorar as condições de vida daqueles que lá viviam.

Nesse mesmo ano de 1848, com o irrompimento da chamada Revolução de Março, um movimento civil liberal, cuja origem foi o grande descontentamento popular com a ordem política e social da Confederação Germânica, capitaneada na época pelo Império Austríaco, Virchow foi desligado da Universidade de Berlim. Esse afastamento compulsório se deu, claramente, por sua posição liberal vigorosa, sua participação direta no movimento com armas e barricadas, por sua adesão à proposta de criação de um ministério da saúde e pela fundação do Jornal Medizinische Reform (1848-1849), que tratava de temas médicos e políticos de maneira realista e contundente.

Em 1849, com a ajuda de proeminentes personalidades da ciência, como, por exemplo, o médico obstetra Friedrich Wilhelm Scanzoni von Lichtenfels (1821-1891), Virchow foi nomeado professor de anatomia patológica na Universidade de Würzburg, na Baviera. No período em que ficou em Würzburg (1849-1856), manteve-se temporariamente afastado da política, o que foi extremamente benéfico para sua carreia médica e docente e vida privada. Nos sete anos em que esteve na Baviera, viu sua reputação como professor e pesquisador crescer enormemente. Além disso, em 1850, casou com Rose Mayer, tendo tido seis filhos (Karl, Hans, Adele, Ernst, Marie e Hanna Elisabeth).

O período na Baviera foi marcado por um alto nível de realizações científicas. Na Universidade de Würzburg, publicou inúmeros artigos e deu início à sua monumental obra de seis volumes intitulada Handbuch der speziellen Pathologie und Therapie. Ele também editou, entre 1851 a 1901, o Jahresbericht über die Leistungen und fortschritte in der gesammten Medizin, um jornal anual em língua alemã sobre os avanços da medicina. Nos anos de 1850 a 1862, Virchow coordenou, com outros colegas, uma sociedade médica em Würzburg denominada Verhandlugen der physikalish-medizinischen Gesellschaft.

Em Würzburg, começou também a formular sua teoria sobre a patologia celular e iniciou seus estudos de antropologia, pesquisando diferentes tipos de crânios. Junto com Robert Remak (1815-1865), postulou que uma célula sempre era derivada de outra célula ou de uma célula pré-existente (Omnis Cellula e Cellula) e que uma célula anormal era também derivada de outra célula anormal (ou patológica). Interessante notar que, apesar de seu espírito científico e vanguardismo, Virchow não deu muito crédito à Teoria de Evolução das Espécies de Darwin, às ideias de Ignaz Semmelweis sobre a necessidade de higienização das mãos no ambiente hospitalar e à Teoria Microbiana das Doenças de Pasteur e Koch, quando essas foram propostas.

Importa ainda mencionar que diversos estudantes de diferentes regiões da Alemanha e da Europa vinham receber formação especializada em seu laboratório na Baviera. Muitos deles, inclusive, posteriormente, vieram a dar valiosas contribuições no campo da medicina e do diagnóstico. Edwin Klebs (1834-1913), Ernst Haeckel (1834-1919) e Adolf Kussmaul (1822-1902) foram alguns dos ilustres estudantes de Virchow.

Em 1856, Virchow retornou à Universidade de Berlim, após aceitar um convite para assumir as cátedras de anatomia, patologia geral e terapêutica, bem como dirigir o recém- criado Instituto de Patologia. Apesar de uma forte concorrência com outros médicos e pesquisadores pela posição na Universidade de Berlim, Virchow foi convidado, principalmente, pelo apoio que o Rei da Prússia Guilherme II deu ao seu nome. Esse instituto, sob seu comando, se tornaria uma das mais importantes instituições de treinamento e formação médica da Alemanha e da Europa, tendo passado por ele, entre outros, Ernst Hoppe-Seyler (1825-1895), que desenvolveu estudos sobre a hemoglobina, Friedrich Recklinghausen (1833-1910), que descreveu a neurofibromatose, e Julius Cohnheim (1839-1884), que estudou a patogênese da trombose e da embolia. Nessa época, ao mesmo tempo em que trabalhava como professor universitário passou também a chefiar uma seção clínica no Hospital Charité. Alguns anos depois, em 1860, foi convidado a assumir o cargo de Conselheiro de Saúde no Governo da Prússia.

No ano de 1858, Virchow apresentou uma série de vinte trabalhos científicos que abrangiam de maneira ampla a fisiopatologia das doenças e que fizeram parte, posteriormente, de seu seminal livro Cellular-Pathologie, publicado nesse mesmo ano. Em 1863, a edição de uma obra sobre patologia das neoplasias, composta por três volumes, e um pequeno livro sobre triquinose, foi iniciada. Em 1867, foi publicado, finalmente, seu volumoso livro sobre a patologia dos tumores (Die Krankhaften Geschwülste), que continha uma classificação sistemática das neoplasias baseada em suas características microscópicas.

Durante toda a sua carreira, sempre com uma mente investigativa e empreendedora, Virchow publicou uma grande quantidade de trabalhos científicos, facilitando o entendimento sobre as doenças e as alterações celulares e teciduais por elas causadas. As suas contribuições incluem, por exemplo, o relato dos corpos amiláceos, da amiloidose renal e ovariana, do melanoma de meninges, da encefalite congênita, da espinha bífida e da leontíase óssea, a descrição química da mielina, leucina e tirosina, além de publicações sobre osteomalácia, tuberculose, sífilis, riquetsiose e parasitoses em geral. Ele também cunhou os termos cromatina, agenesia, parênquima, heterotropia, amiloide, degeneração, mielina, leucocitose, leucemia, endarterite, ocronose e osteoide. A introdução do microscópio óptico no estudo da patologia, por Virchow, foi fundamental para o progresso dessa ciência.

Outro interesse científico de Virchow foi a antropologia. Enquanto exercia o magistério em Würzburg, publicou dois estudos iniciais sobre o cretinismo e a má-formação cranial, entre 1851 e 1852. As investigações antropológicas e as publicações nessa área começaram a ganhar força em seu trabalho quando retornou, em 1856, para Berlim. A partir desse período, teve início uma ampla série de pesquisas em craniologia, craniometria, antro­pometria e etnologia dos povos germânicos e não germânicos da Europa, Ásia e América. Estudos sobre a pré-história do homem também foram levados a cabo. Ele participou de diversas expedições dentro e fora da Europa. Nos anos de 1865 a 1867, participou de escavações e estudou palafitas encontradas em sítios arqueológicos no norte da Alemanha e, em 1870, escavou áreas da região da Pomerânia. Em 1879, com o arqueólogo Heinrich Schliemann, fez escavações em Hissarlik, na Turquia, supostamente um sítio arqueológico associado à cidade de Troia. Entre 1881 e 1894, Virchow fez ainda inúmeras expedições ao Cáucaso. Em 1888, participou de escavações na região do Egito, Núbia e Peloponeso. Tomando como base seus estudos etnográficos e arqueológicos, concluiu que não havia diferenças entre as etnias humanas e que era anedótica a ideia de uma raça superior.

Preocupado com o progresso científico da antropologia e da arqueologia, Virchow colaborou com a fundação de sociedades e jornais científicos nessas áreas. Em 1869, duas sociedades, a Deutsche Anthropologische Gesellschaft e a Berliner Gesellschaft für Anthropologie, Ethnologie und Urgeschichte, foram criadas por ele. Foi também editor de jornais científicos como o Zeitschrift für Ethnologie, Correspondenzblatt da Anthropologische Gesellschaft e Archiv für Anthropologie.

Uma importante faceta da personalidade de Virchow foi seu engajamento político que, interessantemente, corria ao lado das atividades de médico, professor e pesquisador. Profundamente comprometido com a política de seu tempo e de seu país e seus ideais liberais e antirracistas acabaram por obrigá-lo a tomar parte nas propostas de melhoria social, propugnando uma nova constituição, uma reforma fiscal e mais democracia. Ele também enunciou a necessidade dos médicos terem uma relação de maior proximidade com a população mais humilde e necessitada. Virchow concorreu e foi eleito para o Conselho da Cidade de Berlim, em 1859, para a Câmara Baixa da Assembléia Prussiana, em 1861, e para o Reichstag, em 1880. Como conselheiro da cidade de Berlim, melhorou as condições de higiene, redefiniu o sistema de esgotamento sanitário e construiu e reformou vários hospitais. No período em que esteve como parlamentar do Partido Progressista Alemão (1880-1893), no Reichstag, usou sua posição para advogar em favor da saúde pública e criticar a política excessivamente militarista do chanceler alemão Otto von Bismark.

Virchow faleceu aos 81 anos, na cidade de Berlim, em 05 de setembro de 1902, por insuficiência cardíaca, após um acidente com fratura de fêmur, o que o manteve sob longa hospitalização. Em seu funeral, estava presente uma grande quantidade de populares e admiradores. Virchow escreveu mais de 2 mil artigos e livros sobre patologia, antropologia e história geral e da medicina, bem como proferiu inúmeras aulas, palestras e conferências dentro e fora da Alemanha. Em 1892, foi agraciado pela Real Sociedade Britânica com a Medalha Copley, por seus estudos sobre patologia, anatomia patológica e arqueologia e pré-história. Em tributo à sua memória, a Universidade de Humbolt, em Berlim, criou a Cátedra Virchow de Patologia.

 

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Paulo Murillo Neufeld, PhD

Editor-Chefe da Revista Brasileira de Análises Clínicas