Personagens da História da Saúde XIII:  Avicena

Personalities of Health History XIII: Avicenna

 

Paulo Murillo Neufeld, PhD  |  Editor Emérito da RBAC

 

 

Recebido em 08/11/2023

Aprovado em 20/11/2023

DOI: 10.21877/2448-3877.202400169

 

Avicena foi um filósofo islâmico e médico da Idade Média oriental com notáveis contribuições em praticamente todas as áreas do saber de sua época. Na medicina, estudou, comentou e revolucionou as obras médicas de antecessores históricos como Hipócrates, Galeno e Aristóteles, entre outros. Como um médico teórico e prático, e com grande rigor científico, estabeleceu as bases para a expansão e o desenvolvimento das ciências médicas, definindo que o objeto material da medicina é o ser humano e determinando os limites entre saúde e doença.

Interessante notar que a história da vida e obra de Avicena é bastante conhecida, inclusive com muitos detalhes, pois ele escreveu uma autobiografia que foi, posteriormente, complementada com material escrito por seus alunos. Além de deixar sua própria biografia, Avicena teve uma produção literária prolífera. Das 450 obras que ele teria escrito, cerca de 240 sobreviveram, incluindo 150 sobre filosofia e 40 sobre medicina. Dentro da área médica, as duas obras mais importantes de Avicena são o Al Qanun fi al Tibb (“O Cânon de Medicina”) e o Kitab al Shifa (“O Livro da Cura”).  O primeiro é um dos livros mais famosos da história da medicina. O segundo é uma enciclopédia científica que abrange lógica, ciências naturais, psicologia, geometria, astronomia, aritmética e música.

Abû-‘Aly al-Husayn Ibn ‘Abdallah Ibn Sînâ conhecido apenas como Ibn Sînâ ou por seu nome latino Avicena nasceu em agosto de 980 em Afsina/ Kharmaitan, uma localidade próxima à cidade de Bukhara, na Transoxiana, na Ásia Central, que integrava, nesse momento, o Império Persa Samânida, hoje atual Uzbequistão. Avicena era filho de Abdallah, nascido na cidade de Balkh e de etnia turca, e que era funcionário da burocracia samânida com funções de governador em uma vila de propriedade real conhecida como Balja, e de Sitara, uma mulher Tadjik de origem persa. Após cinco anos do seu nascimento, nasceu Mahmoud, seu único irmão.

Avicena foi educado por seu pai, cuja casa era um ponto de encontro para homens intelectuais da região. Havia muita discussão em sua casa sobre geometria, filosofia, teologia e até métodos contábeis. Avicena foi uma criança notável, com uma memória e uma capacidade de aprender que surpreenderam os estudiosos que se encontraram na casa de seu pai. Aos dez anos de idade, ele havia memorizado o Alcorão e a maior parte da poesia árabe que havia lido. Quando atingiu a idade de treze anos, ele começou a estudar medicina e, aos dezesseis anos de idade, já dominava bem a matéria médica da época, quando começou a tratar pacientes. Avicena estudou com um vendedor de legumes indiano que também era agrimensor. Foi a partir dele que Avicena conheceu o sistema indiano de cálculo, fazendo uso do zero em seus cálculos matemáticos.  Ele também estudou geometria euclidiana, metafísica e lógica aristotélica, doutrina e jurisprudência islâmica, recebendo instruções de alguns dos melhores professores do seu tempo, mas em todas as áreas, continuou seus estudos por conta própria. Em sua autobiografia, enfatiza que ele era mais ou menos autodidata, mas que sempre em momentos cruciais de sua vida, ele recebeu ajuda.

Na verdade, foi sua habilidade em medicina que se mostrou de grande valor para Avicena, pois foi através de sua reputação na área médica que o governante samânida Nuh ibn Mansur veio a ouvir falar dele e o contratou como seu médico particular. Depois que Avicena curou Nuh ibn Mansur de uma importante doença, como recompensa, ele foi autorizado a usar a Biblioteca Real dos samânidas, o que provou ser fundamental para o seu desenvolvimento em toda a gama de estudos.

Com a saída dos samânidas do poder e a morte de seu pai, a vida de Avicena mudou completamente. Sem o apoio de um patrono e de seu pai, ele começou uma vida errante, vagando por diferentes cidades, atuando como médico e administrador durante o dia, enquanto a noite reunia estudantes ao seu redor para ensinar e discutir filosofia e ciência. Vivendo sem destino certo, muda-se para Jerjan, perto do Mar Cáspio. Nessa cidade, lecionou sobre astronomia e lógica e escreveu a primeira parte do “Cânon da Medicina”. Mais tarde, mudou-se para Al-Rayy, região próxima da atual Teerã, onde trabalhou também como médico. Cerca de 30 livros foram escritos por Avicena durante sua estada nessa cidade. No entanto, novamente, decide mudar, indo para Hamadan, atuando, mais uma vez, na medicina e se tornando depois médico particular e confidente do Emir, sendo, por isso, nomeado Grão-Visir. Em decorrência de questões políticas, com a morte do Emir, Avicena é preso em Hamadan. Na prisão, escreveu vários livros. Após sua libertação, ele foi para Isfahan, passando seus últimos anos servindo ao Emir local. O “Livro da Cura” e o “Cânon de Medicina”, que haviam sido iniciados em Jerjan e Hamadan, foram finalizados em Isfahan.  Nessa localidade, ainda escreveu diversas outras obras sobre filosofia, medicina e língua árabe.

Em relação ao “Cânon de Medicina”, o livro médico mais influente já escrito por um médico muçulmano, pode-se considerar que ele representa uma enciclopédia médica composta por uma soma da medicina árabe com suas raízes gregas, modificadas pelas observações pessoais de Avicena. Esse livro foi traduzido para o latim no século XII, tornando-se o livro didático para a educação médica na Europa do século XII ao XVII. Além de várias edições latinas, existe uma escrita em hebraico. O “Cânon” é dividido em cinco livros, incluindo clínica e terapêutica médica com cerca de 760 medicamentos listados.

O “Canon de Medicina” escrito por Avicena inclui: Livro I: Parte 1: Os Institutos da Medicina: Definição de medicina, sua tarefa e sua relação com a filosofia. Os elementos, humores e temperamentos. Os órgãos e suas funções. Parte 2: Causas e sintomas de doenças. Parte 3: Dietética geral e profilaxia. Parte 4: Terapêutica Geral. Livro II: Sobre os medicamentos simples e suas ações. Livro III: As doenças do cérebro, do olho, do ouvido, da garganta e da cavidade oral, dos órgãos respiratórios, do coração, da mama, do estômago, do fígado, do baço, do intestino, dos rins e dos órgãos genitais. Livro IV: Parte 1: Sobre febres. Parte 2: Sintomas e prognóstico. Parte 3: Sobre sedimentos. Parte 4: Sobre feridas. Parte 5: Sobre deslocamentos. Parte 6: Sobre venenos e cosméticos. Livro V: Sobre a manipulação de medicamentos.

Em seu “Cânon de Medicina”, Avicena documentou corretamente a anatomia do olho, juntamente com a descrição de condições oftálmicas, como catarata. Afirmou que a tuberculose era contagiosa. Ele descreveu os sintomas do diabetes e fez descrições dos tipos de paralisia facial. Avicena descreveu vários transtornos psiquiátricos, incluindo o chamado “transtorno do amor”, que ele considerava como um transtorno obsessivo semelhante à depressão grave. Oito capítulos do “Cânon” trataram da neuroanatomia funcional da coluna vertebral, incluindo a estrutura das vértebras e as várias partes da coluna vertebral e sua biomecânica.  Ele escreveu ainda sobre medicina perinatal, incluindo banho e alimentação e causas de deformidades.

Avicena morreu em 1037, aos 57 anos, sendo sepultado na cidade de Hamadan. Talvez o mais notável na vida de Avicena seja o fato de que ele continuou a produzir estudos de alta qualidade, apesar de seu estilo caótico, pois vivia na errância, bebia exageradamente vinho, tinha uma vida promíscua, além de ter sido preso em diferentes momentos por envolvimento em políticas de Estado.

 

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