Esporotricose: de micose negligenciada em saúde pública à zoonose emergente de notificação compulsória

Sporotrichosis: from a neglected subcutaneous mycosis in public health to an emerging notifiable zoonosis

 

 

Paulo Murillo Neufeld  |  Editor Emérito da RBAC

 

 

Recebido em 03/04/2025

Aprovado em 04/04/2025

DOI: 10.21877/2448-3877.202500231

 

 

A esporotricose é uma micose subcutânea causada por fungos termodimórficos do gênero Sporothrix, tradicionalmente relacionada à inoculação traumática da pele por fragmentos vegetais contaminados, configurando-se como uma sapronose clássica de ambientes rurais. Entretanto, a partir das últimas décadas do século XX, particularmente no Brasil, observou-se uma profunda transformação no perfil epidemiológico da doença, marcada pela emergência de uma forma zoonótica urbana, cuja principal via de transmissão passou a ser o contato direto com gatos domésticos infectados. Essa transição epidemiológica é protagonizada pelo Sporothrix brasiliensis, espécie emergente de elevada virulência, fortemente adaptada ao hospedeiro felino e com capacidade de gerar surtos hiperendêmicos em centros urbanos.

Avanços na taxonomia e classificação fúngica, impulsionados por técnicas moleculares como o sequenciamento de regiões ITS, do gene da calmodulina e o uso da espectrometria de massas por MALDI-TOF, permitiram a redefinição do agente etiológico da esporotricose. O que outrora se reconhecia como Sporothrix schenckii passou a ser compreendido como um complexo de espécies crípticas, com distintos perfis epidemiológicos, clínicos, morfofisiológicos e de virulência. Dentre essas, destacam-se S. schenckii sensu stricto, S. globosa, S. luriei e, principalmente, S. brasiliensis, esta última responsável pela maioria dos casos humanos e animais no Brasil nas últimas décadas. A diferenciação interespecífica é essencial, uma vez que as espécies apresentam respostas terapêuticas e padrões de disseminação distintos.

No contexto brasileiro, o estado do Rio de Janeiro configura-se como o principal epicentro da esporotricose zoonótica, com mais de 10.000 casos humanos e cerca de 8.500 casos felinos documentados entre 1998 e 2020. A transmissão ocorre majoritariamente por meio de mordidas, arranhaduras ou contato direto com secreções de gatos infectados, cujas lesões apresentam elevada carga fúngica. Essa forma de transmissão direta interespécies, até então incomum entre as micoses subcutâneas, é favorecida por fatores como alta densidade populacional felina, ausência de controle reprodutivo, coinfecções parasitárias e condições socioambientais precárias. Em felinos, a infecção assume frequentemente curso grave, com manifestações ulceradas extensas, disseminação fúngica sistêmica e elevada taxa de letalidade.

No espectro clínico humano, a forma linfocutânea continua sendo a apresentação mais prevalente, seguida pelas formas cutânea fixa, extracutânea e disseminada, estas últimas mais frequentes em pacientes imunocomprometidos, incluindo aqueles coinfectados por HIV. Manifestações imunorreativas, como eritema nodoso e artrite reativa, também têm sido descritas, especialmente em infecções por S. brasiliensis. A notável adaptação dessa espécie à mucosa oral e às garras dos felinos, somada à sua baixa diversidade genética intraespécie (evidência de expansão clonal recente) contribui para sua elevada transmissibilidade e persistência ambiental em núcleos urbanos.

O impacto psicossocial da esporotricose também é significativo. Lesões ulceradas visíveis, tratamentos prolongados e de alto custo, perda de capacidade produtiva e estigmatização social estão entre os efeitos mais frequentes observados em pacientes acometidos. Em áreas hiperendêmicas, essas consequências são agravadas pela pobreza, baixa escolaridade e limitações de acesso aos serviços de saúde, configurando um ciclo de invisibilidade epidemiológica, abandono terapêutico e perpetuação da transmissão.

O diagnóstico laboratorial da esporotricose ainda se baseia, majoritariamente, na cultura micológica de amostras clínicas, método considerado padrão-ouro. No entanto, sua baixa sensibilidade, especialmente em formas subagudas ou crônicas, limita a acurácia diagnóstica. Métodos complementares, como a histopatologia, a sorologia e, mais recentemente, a PCR convencional e em tempo real, têm sido empregados com sucesso em centros de referência, permitindo maior rapidez na identificação da espécie envolvida e no direcionamento terapêutico. Em felinos, a intensa carga fúngica favorece a observação direta de leveduras, facilitando o diagnóstico.

O tratamento farmacológico é baseado, preferencialmente, no uso do itraconazol, antifúngico de escolha para casos cutâneos. Formas graves, refratárias ou disseminadas requerem terapias mais agressivas com anfotericina B ou, alternativamente, posaconazol. O surgimento de cepas resistentes, principalmente de S. brasiliensis, tem motivado estudos sobre novos antifúngicos, como a miltefosina e inibidores enzimáticos específicos, além de terapias adjuvantes. A terapêutica em felinos é particularmente desafiadora, exigindo tratamentos prolongados e monitoramento rigoroso, o que frequentemente resulta em abandono dos animais e perpetuação da cadeia de transmissão.

A elevada carga zoonótica e a rápida expansão geográfica da esporotricose no Brasil colocam a micose em posição estratégica dentro das doenças infecciosas emergentes e negligenciadas. Por muitos anos, a ausência de notificação compulsória em âmbito nacional dificultou a consolidação de dados epidemiológicos confiáveis, comprometendo o planejamento e a execução de ações efetivas de vigilância e controle. No entanto, neste ano de 2025, a esporotricose humana foi oficialmente incluída na Lista Nacional de Notificação Compulsória pelo Ministério da Saúde, conforme pactuação da Comissão Intergestores Tripartite. A partir dessa inclusão, os casos deverão ser registrados no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), o que permitirá mapear com maior precisão a distribuição da doença no território nacional, subsidiar políticas públicas e viabilizar respostas mais articuladas.

Entre as estratégias previstas estão a criação de fichas específicas de notificação e investigação, a formulação de protocolos de vigilância com fluxos adaptados à esporotricose humana, capacitações técnicas para profissionais de saúde, estruturação dos LACEN’s e o aprimoramento da logística de fornecimento de medicamentos, considerando o possível aumento da demanda decorrente da sensibilidade do sistema de vigilância. Nesse sentido, a iniciativa também contempla o fortalecimento da rede diagnóstica e terapêutica no Sistema Único de Saúde (SUS), com vistas a garantir o efetivo tratamento.

Para atender a esse novo contexto sanitário, torna-se imprescindível adotar uma abordagem integrada e multidisciplinar, fundamentada no conceito de “Saúde Única” (One Health), que contemple simultaneamente ações em saúde humana, medicina veterinária e vigilância ambiental. O controle efetivo da esporotricose zoonótica exige medidas estruturadas, com programas de esterilização e controle populacional felino e de educação sanitária para a população e desenvolvimento de vacinas imunopreventivas, sobretudo voltadas ao hospedeiro felino, elo central da cadeia de transmissão.

Importa mencionar ainda que a esporotricose, especialmente em sua forma zoonótica causada pelo S. brasiliensis, representa um modelo paradigmático de micose emergente, com alto impacto na saúde pública, desafiando os sistemas tradicionais de vigilância, diagnóstico e controle. O enfrentamento eficaz dessa enfermidade requer, portanto, não apenas inovação científica e tecnológica, mas também compromisso político, investimento institucional e equidade no acesso ao cuidado.

 

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