O Fim do QUALIS e os Novos Rumos da Avaliação Científica

The End of QUALIS and the New Directions of Scientific Evaluation

 

Mauren Isfer Anghebem  |  Editora-Chefe da RBAC

Paulo Murillo Neufeld  |  Editor Emérito da RBAC

 

 

Recebido em 15/05/2025

Aprovado em 15/07/2025

DOI: 10.21877/2448-3877.202500251.pt

 

 

Nos últimos anos, a ciência brasileira tem passado por transformações significativas, e dentre elas uma das mais impactantes para a comunidade acadêmica foi a extinção do sistema de classificação de periódicos QUALIS, mantido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Por décadas, o QUALIS serviu como um dos principais critérios para avaliar a produção científica dos programas de pós-graduação no país, com classificações que variavam de A1 (mais alto) a C (não qualificado), influenciando diretamente onde e como os pesquisadores publicavam seus trabalhos.

Essa classificação cumpriu papel relevante na organização e hierarquização dos veículos de divulgação científica. Entretanto, no contexto atual da ciência globalizada e digitalizada, o QUALIS passou a apresentar sinais evidentes de obsolescência e anacronismo, tornando-se alvo de críticas por parte da comunidade acadêmica.

Uma das principais limitações do sistema estava relacionada à adoção de critérios predominantemente quantitativos, como fator de impacto, indexação em bases específicas e classificação da editora. Esses indicadores, embora relevantes em certa medida, não eram suficientes para refletir a complexidade e a diversidade da produção científica contemporânea, marcada pelo crescimento de periódicos de acesso aberto, repositórios de preprints e indicadores alternativos de impacto, como as chamadas altmetrics. Além disso, o processo de atualizações lentas e muitas vezes defasadas do QUALIS perpetuava a presença de periódicos pouco relevantes em faixas elevadas da classificação, ao passo que revistas importantes para áreas mais específicas, como as Análises Clínicas, eram subvalorizadas ou ignoradas.

Outro aspecto criticado referia-se à estrutura compartimentalizada do sistema, que separava revistas brasileiras de estrangeiras e aplicava critérios distintos por áreas do conhecimento. Essa lógica fragmentada contribuía para a desarticulação entre a ciência produzida no Brasil e o debate científico internacional. Em vez de incentivar a internacionalização da pesquisa brasileira, o sistema muitas vezes estimulava a publicação em periódicos locais que possuíssem alta classificação no QUALIS, mas baixo impacto fora do país, favorecendo estratégias de publicação voltadas exclusivamente ao ranqueamento e não à relevância científica. Tal prática comprometia não apenas a visibilidade internacional dos pesquisadores brasileiros, mas também a integridade do processo de avaliação da pós-graduação.

A segmentação por áreas do conhecimento também introduzia distorções adicionais. Cada área elaborava seus próprios critérios de avaliação, o que resultava em assimetrias que dificultavam a comparabilidade entre campos distintos e podiam gerar vantagens indevidas a determinadas subáreas. Com isso, programas de pós-graduação de diferentes áreas eram avaliados por métricas incomensuráveis, o que enfraquecia a equidade do sistema. Ademais, essa configuração induzia à adoção de práticas questionáveis, como a escolha de periódicos com base exclusiva em sua classificação QUALIS, em detrimento da pertinência temática e do público-alvo da pesquisa. Havia ainda relatos do uso de revistas de qualidade duvidosa, ou mesmo predatórias, que foram equivocadamente bem-posicionadas no sistema, revelando fragilidades graves nos critérios de avaliação.

Em resposta às críticas acumuladas, a CAPES propôs, em 2019, a criação do QUALIS Referência, com o intuito de unificar e racionalizar os critérios de avaliação, adotando indicadores bibliométricos internacionalmente reconhecidos, como aqueles da Scopus e da Web of Science. Apesar de representar um avanço conceitual, sua implementação foi marcada por lentidão e resistência de setores da academia, que temiam a perda de especificidades das áreas. Ainda assim, havia um consenso crescente de que esse modelo era insuficiente para lidar com os desafios de uma ciência aberta, interconectada e pautada pela avaliação por pares em ambientes globalizados.

Diante desse cenário, ficou claro que o QUALIS, embora tenha desempenhado um papel histórico na consolidação da pós-graduação brasileira, acabou se tornando um instrumento anacrônico que comprometia a visibilidade, a integridade e a inserção internacional da ciência nacional. Sua permanência nesse modelo levava a consolidação de práticas pouco concordantes com os princípios contemporâneos da ciência aberta, colaborativa e orientada por relevância social. Uma reformulação profunda do sistema era, portanto, urgente e necessária para que o Brasil se alinhasse às melhores práticas internacionais de avaliação científica.

A descontinuação do QUALIS, oficialmente substituído por novos e modernos parâmetros de avaliação, representa uma mudança profunda na forma como os periódicos e suas publicações serão considerados nos processos de avaliação institucional e individual. A decisão da CAPES vem ao encontro de um movimento mais amplo de reformulação dos critérios brasileiros de excelência científica, com maior ênfase na qualidade do conteúdo, no impacto real das publicações e em métricas mais robustas e reconhecidas globalmente, como o Journal Impact Factor (JIF), CiteScore, H-index, entre outros.

Para a área de diagnóstico laboratorial, essa mudança traz desafios e oportunidades. Se, por um lado, o fim do QUALIS elimina um sistema criticado por distorções regionais, falta de transparência e descompasso com padrões internacionais, por outro, gera incertezas para pesquisadores e editores de periódicos nacionais, especialmente aqueles que ainda lutam por maior visibilidade e indexação em bases de dados internacionais.

Este novo paradigma também impõe uma reflexão sobre o papel dos periódicos científicos brasileiros. Em vez de priorizar classificações burocráticas, será necessário investir em práticas editoriais transparentes, revisão por pares qualificada, abertura de dados, e divulgação científica eficaz. A qualidade editorial, a contribuição científica real e a capacidade de promover debates relevantes passarão a ser os principais diferenciais.

É possível que, a curto prazo, haja um movimento de concentração de publicações em revistas estrangeiras já consolidadas, como estratégia dos pesquisadores para manter a relevância de seus currículos. Isso pode, inadvertidamente, enfraquecer os periódicos brasileiros, dificultando a consolidação de uma produção científica nacional forte e reconhecida internacionalmente. No entanto, também se abre uma janela para que os periódicos da área invistam em qualidade editorial, internacionalização, revisão por pares rigorosa e adoção de boas práticas editoriais que os posicionem melhor em métricas bibliométricas reconhecidas.

Cabe às revistas científicas, como a nossa, repensar sua missão e estratégias editoriais para continuar sendo um espaço de divulgação científica confiável, acessível e relevante. É fundamental que os pesquisadores também compreendam que a publicação científica deve transcender o fator classificatório, sendo um instrumento para a construção do conhecimento e para a melhoria da prática profissional — especialmente em áreas como o diagnóstico laboratorial, cuja aplicabilidade direta impacta na saúde pública e na qualidade do cuidado ao paciente.

A RBAC – Revista Brasileira de Análises Clínicas tomou um passo importante este ano ao iniciar a publicação de seus artigos em português e inglês. Esta estratégia posicionará melhor os artigos publicados na RBAC.  Seguiremos atentos e engajados neste processo de transformação. O compromisso com a ciência de qualidade, a ética na publicação e o fortalecimento da produção científica nacional devem guiar nossas ações. O futuro da avaliação científica no Brasil está em construção, e todos — editores, autores, revisores e instituições — têm um papel ativo nesse processo.