Alterações laboratoriais e a COVID-19

Laboratory alterations and COVID-19

 

Ricardo Brito de Oliveira Junior1

Patrick Menezes Lourenço2

1Biomédico Professor convidado da Pós-Graduação Lato Sensu da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro-RJ, Brasil.
2Biólogo. Unidade de Laboratório de Análises Clínicas – Hospital Gaffrée e Guinle – Universidade Federal do Estado Rio de Janeiro (Unirio).
Rio de Janeiro-RJ, Brasil.

Recebido em 15/07/2020
Artigo aprovado em 04/08/2020
DOI: 10.21877/2448-3877.20200013

Prezado Editor

Mais um surto surge no novo século, incomodando com mais veemência a paz mundial, sendo a sexta vez que a OMS entra com decreto de emergência em saúde pública internacio­nal. Atualmente, estamos vivendo uma pandemia causada por uma nova cepa de Coronavírus, conhecido por SARS-CoV-2, causador do Coronavírus, que determina uma síndrome respiratória aguda de forma muito abrupta. Diante da atual situação mundial, onde ainda não há vacina e medicamentos específicos para o tratamento da virose, vale salientar a importância do conhecimento por todos os profissionais da saúde acerca dos aspectos básicos da biologia viral, epidemio­logia, patogê­nese, resposta imune do hospedeiro e sintoma­tologia, que são objetos de recentes estudos.

Com a experiência vivida no apoio laboratorial em surtos endêmicos e pandêmicos no continente africano, entre 2013 e 2014, e lidando atualmente com a pandemia de coronavirose nos hospitais da rede privada e oficial do Rio de Janeiro, para nós fica patente a importância da medicina laboratorial na prevenção, diagnóstico e acompanhamento de doentes em situação de calamidade pública. Quando um paciente procura o serviço de urgência ou emergência com queixa e sintomatologia dessa virose, a linha de frente da investigação da suspeita clínica são os testes laboratoriais e de imagem. No caso dos testes de laboratório, esses são constituídos por uma lista básica de analitos conhecida como painel de exames. O objetivo desta carta é discutir sobre as principais alterações desses analitos nos pacientes infectados pelo SARS-CoV-2 nas quatro fases do curso da doença.

Na fase 1 (primeira semana de surgimento dos sinais e sintomas), o indivíduo apresenta um estado gripal, com mal-estar, coriza, febrícula intermitente, alteração no olfato e paladar, diarreia (~25%) e conjuntivite. Nessa fase, os exames laboratoriais que podem apresentar algum início de alteração são os componentes do hemograma, linfócitos tendendo a uma diminuição, devido a uma menor resposta ao vírus, o que é o oposto do que estamos acostumados a encontrar na maioria das viroses, pois os linfócitos possuem em sua membrana plasmática receptores expressos ACE2 para o coronavírus,  tornando-se um possível alvo de infecção. Os exames bioquí­micos, coagulograma, eletrólitos e equilíbrio ácido-base não mostram alterações relevantes na maioria dos pacientes que se encontram nesta fase da doença.

Na fase 2 (segunda semana de evolução dos sinais e sintomas), começa a surgir tosse seca, a febre tende a aumentar (~37,5 a 38ºC), pode iniciar artralgia e mialgia. No hemograma, a linfocitopenia pode começar a se intensificar, mostrando um prognóstico ruim. O aparecimento de leuco­citose e/ou neutrofilia pode estar relacionado com infecção bacteriana associada. Os marcadores de fase aguda (como processo inflamatório) começam a aumentar de acordo com a resposta orgânica à infecção. Desses marcadores, o mais utilizado no painel de emergência e urgência é a proteína C-reativa, por sua alta sensibilidade e exibir os aumentos mais dramáticos dentre todos os marcadores de reação de fase aguda, tendo em vista que esse marcador, após realizar a sua ligação, ativa o sistema complemento (via clássica), inicia o processo de opsonização e faz quimiotaxia, estimulando os processos de fagocitose e lise dos antígenos invasores. A proteína C-reativa atua semelhante ao complexo antígeno-anticorpo, reconhecendo substâncias tóxicas de origem autógena liberadas por tecidos lesionados, bem como detoxificando e eliminando, em seguida, esses produtos da corrente sanguínea. De todos os marcadores relacionados com resposta à reação de fase aguda, a proteína C-reativa é a mais sensível, porém com baixa especificidade. Alguns pacientes apresentam, ainda, hipoalbuminemia, pois a albumina encontra-se diminuída na maioria das reações de fase aguda geradas por processo inflamatório. Existem alguns motivos para a diminuição da concentração da albumina, como o aumento da permeabilidade capilar, decorrente da fase exsu­dativa do processo inflamatório, fazendo com que ocorra a entrada de mais albumina no espaço extravascular, diminuição da síntese em resposta à pressão oncótica coloidal e diminuição da síntese hepática em resposta a citocinas inflamatórias, principalmente a interleucina 6 (IL-6).

Outros analitos também podem sofrer alteração na concentração sanguínea em resposta a uma reação de fase aguda, mas não fazem parte do painel de emergência e urgência. Nessa fase, podemos observar igualmente um início de alteração no Dímero-D, pois a codificação de algumas proteínas não estruturais pelo RNA+ do vírus pode prejudicar a estrutura eritrocitária (o que estimula a coagulação intravascular disseminada) e da hemoglobina, retirando o átomo de ferro necessário para o transporte de oxigênio. Além disso, a infecção causa uma disfunção endotelial, estimulando em excesso a geração de trombina com consequente redução da fibrinólise, promovendo uma hipercoagulabilidade. Essa perda da ligação do ferro, explica, em parte, o início da queda da saturação de oxigênio (SO2), porém, na maioria dos pacientes ainda encontramos valores entre 93% a 95%.  Muitos indivíduos que se encontram nessa fase (~80%) conseguem caminhar para uma boa resolução do problema.

Cerca de 20% dos pacientes evoluem para a terceira fase, que apresenta complicações muito mais abruptas do que as fases anteriores. A evolução para essa fase é rápida, ocorre em média entre o oitavo e o décimo dia. Os sinais e sintomas mais comuns são cronificação de tosse seca e cansaço com dispneia, que explica a queda da SO2 para os valores entre 90% e 92%. Esses pacientes podem começar a apresentar uma hipóxia tecidual por conta da dispneia, situação que explica os aumentos de lactato e lactato desidro­genase (LDH), pois o lactato é um intermediário no metabolismo dos carboidratos e sua remoção extra-hepática ocorre no músculo estriado esquelético e no córtex renal pelo processo de oxidação. Já a LDH é uma enzima encontrada no citosol de todas as células em concentrações consideráveis e a injúria da célula estimula sua saída e consequente aumento da concentração na corrente sanguínea. O aumento dessa enzima também é indicado pela elevação de lactato, pois ela catalisa a oxidação de 1-lactato a piruvato com a mediação de NAD+ como aceptor de hidrogênio. A LDH é amplamente distribuída pelo organismo, possuindo cerca de sete isoenzimas. Nesta discussão, vale salientar a importância da isoenzima 3, pois apresentam altas concentrações nos pulmões, leucócitos, linfonodos, plaquetas e baço. A PCR, o principal marcador de fase aguda na emergência/urgência, atinge valores críticos na maioria dos pacientes dessa fase. O Dímero-D também aumenta sua concentração e alguns pacientes chegam a exibir valores críticos (cerca de seis vezes acima do valor de referência).  No coagulograma, observamos alterações nos valores de PTT, que aumenta sua atividade e pode gerar resultados abaixo de 25 segundos em grande parte dos pacientes. O hemograma apresenta trombo­citopenia consequente à alteração do sistema de coagulação. A linfocitopenia começa a agravar-se (cerca de quatro linfócitos na leucometria específica) com subsequente leuco­citose e neutrofilia pela presença de infecção bacteriana associada, o que não é uma regra.

A evolução da terceira para a quarta fase pode ocorrer entre o décimo segundo e décimo quarto dia, quando cerca de 50% dos pacientes necessitam de intubação por conta das complicações no sistema respiratório e hematológico. Os pacientes apresentam síndrome do desconforto respiratório, sendo a insuficiência respiratória um quadro bastante comum, o que explica a queda da SO2 para cerca de 80% a 90%, a diminuição do pH ao redor de 7,25 a 7,31 e o aumento da concentração de CO2 e lactato na corrente sanguínea, caracterizando uma acidose mista (aumento da CO2, causando acidose respiratória, e aumento da lactato, causando acidose metabólica). Essa situação determina uma hipóxia bastante abrupta, prejudicando órgãos e sistemas que necessitam de grande parte do débito cardíaco, como fígado e rins, fazendo com que as concentrações de alanina amino­transferase (ALT), aspartato aminotransferase (AST) e ureia se elevem na corrente sanguínea.

As alterações do coagulograma se apresentam muito mais críticas do que nas fases anteriores devido à presença de febre elevada (acima de 38ºC na maioria dos pacientes) e hipotensão arterial (podendo levar ao choque). É sabido que o aumento da temperatura (causado pela febre) e a diminuição na velocidade do fluxo sanguíneo (causado pela hipotensão arterial) são grandes estimuladores para o sistema de coagulação sanguínea. Não podemos esquecer que as proteínas virais estruturais e não estruturais continuam sendo sintetizadas, prejudicando a estrutura das hemácias e hemoglobina, o que intensifica ainda mais a hipóxia e os valores baixos da SO2 e a ativação do sistema de coagulação sanguínea.

Com o avanço dessa quarta fase, alguns pacientes apresentam a síndrome hemofagocítica, causando a diminuição do número de hemácias devido ao aumento da atividade dos macrófagos do sistema reticuloendotelial esplênico e hepático, podendo levar a uma esplenomegalia, hepatomegalia (aumentando a ALT e AST na corrente sanguínea), hepato­esplenomegalia e linfonodomegalia sistêmica com presença de rash cutâneo. Essa síndrome causa aumento significativo de potássio e LDH, que continuam evoluindo junto com a sintomatologia.

Os indivíduos que exibem esse quadro por mais de três a cinco dias começam a apresentar alterações nos marca­dores cardíacos (Troponina I, CPK total, CPK-MB atividade, CPK-MB massa e Mioglobina) em decorrência de distúrbios da coagulação, hipotensão arterial, hipóxia e síndrome hemato­fagocítica.

O uso de hidroxicloroquina (ainda em estudo) pode causar alterações nos exames laboratoriais de acordo com a fase da doença, dose administrada e interação medicamentosa. Essas alterações podem ocorrer principalmente nos eletrólitos (Na, K, Mg e Ca), marcadores cardíacos, glicemia, fosfatase alcalina (FAL), gama gluta­miltrans­peptidase (GGT), ALT, AST e Pro-BNP. A administração de azitromicina é feita quando ocorre uma infecção bacteriana conjunta. Este fármaco pode levar a alterações de FAL, GGT, AST, ALT, ureia, coagulograma, plaquetas, Na, K, Ca e Mg.

Uma questão que pode ser levantada é se outros analitos que não fazem parte do painel de exames laboratoriais de emergência e urgência podem auxiliar na avaliação do comprometimento orgânico da infecção em suas complicações e tratamento. Como, por exemplo, a ferritina no processo de dano eritrocitário e da hemoglobina, na retirada do átomo de ferro por proteínas não estruturais sintetizadas pelo vírus, a alfa1-antitripsina, que é sintetizada no fígado, mas mantém maior parte da sua atividade (~98%) de inibição de proteases no parênquima pulmonar, a alfa1-glicoproteína ácida, uma lipo­calina que possui a função de ligar substâncias lipofílicas, a alfa2-macro­globulina, sintetizada no fígado, mas que tem a função de inibir proteinases no plasma sanguíneo, a cerulo­plas­mina, que contém cerca de 95% do cobre sérico, possuindo como uma das funções a regulação vital do ferro e realizando sua oxidação para posterior incorporação à transferrina, a haptoglobina, que se liga irreversivelmente à hemoglobina, evitando sua perda por via renal, fazendo dela um excelente marcador de hemólise, a  hemopexina, responsável pelo transporte do heme livre, o que evita sua toxicidade, a transferrina, principal proteína transportadora de ferro para hemoglobina, mioglobina, citocromos, fígado e sistema retículo-endotelial, as proteínas do complemento, principalmente C3 e C4, a inter­leucina 6 e o fator de necrose tumoral alfa, que são substâncias relacionadas intimamente com o processo infamatório e que realizam uma potente quimiotaxia, estimulando e inibindo células e outros componentes do sistema imunológico.

O Ministério da Saúde tem afirmado que os testes em massa para a Covid-19 são necessários para o entendimento do comportamento da doença e para definir as melhores estratégias e ações. Se os dados preliminares estiverem corretos, 80% dos pacientes com a COVID-19 não apresentam sintomas ou são pouco sintomáticos. Nesse cenário, a concentração dos testes em pacientes internados e em estado mais graves não vai permitir entender a epidemiologia da doença, o que implica o não conhecimento da sua incidência, evolução, prevalência, transmissibilidade e letalidade.

O desenvolvimento de um painel laboratorial como os que existem para outras doenças irá ajudar na avaliação do curso da doença e facilitar a solicitação de exames para a investigação clínica.

 

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Correspondência

 Ricardo Brito de Oliveira Junior

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Patrick Menezes Lourenço

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