A tradicional ética africana do ubuntu e a moderna liderança empresarial: à guisa de uma introdução para a gestão laboratorial

 

O termo ubuntu tem sua origem nas línguas bantu (subfamília nguni) da África do Sul. A palavra ubuntu é compartilhada com a mesma grafia e transcrição fonológica por quatro grupos étnicos (ndebele, swati, xhosa e zulu). Ubuntu é uma palavra formada pela junção do prefixo ubu com a raiz ntu e traz o sentido de unidade e totalidade indivisível. Desse modo, ubu está invariavelmente orientado para ntu, isso é, na acepção de ubuntu, toda a realidade está integrada.(1,2)

Uma primeira aproximação sobre o significado dessa palavra africana pode ser conseguida pela leitura de uma história bastante difundida na literatura e atribuída à jornalista e filósofa argentina Lia Diskin, sobre a ideologia ubuntu. Essa história versa, exatamente, acerca de um pesquisador em meio a um povo que tem ubuntu:(3)

Um antropólogo estudava os usos e costumes de uma tribo na África e, ao terminar sua pesquisa, ficou aguardando o transporte que o levaria de volta ao aeroporto. Como havia algum tempo, antes da partida, propôs uma brincadeira para as crianças do local. Num cesto, o pesquisador colou doces e balas, deixando-o embaixo de uma árvore. Em seguida, chamou as crianças e combinou com elas que, quando ele desse o sinal, todas deveriam sair correndo até o cesto. Assim, aquela que chegasse em primeiro lugar ficaria com os doces e as balas. Quando o antropólogo, então, deu o sinal, todas as crianças se deram as mãos e saíram correndo em direção à árvore. Lá chegando, distribuíram entre si o prêmio. Não compreendendo o comportamento das crianças, o pesquisador perguntou a elas por que todas tinham ido juntas, já que uma só poderia ter ficado com tudo? Elas simplesmente responderam “Ubuntu! Como um de nós pode estar feliz, enquanto todos os outros estão tristes?”

Ubuntu é uma filosofia moral e humanista africana que se fundamenta nas alianças e no relacionamento mútuo entre as pessoas.(4) O ubuntu nasce da ideia ancestral [1.500 anos a.C.] de que a força da comunidade vem do apoio comunitário e de que a dignidade e a identidade são alcançadas por meio do mutualismo, da empatia, da generosidade, do compromisso comunitário e do trabalho colaborativo em prol de si mesmo e dos demais. Nesse sentido, o ubuntu se diferencia da filosofia ocidental derivada do racionalismo iluminista que coloca o indivíduo no centro da concepção de ser humano.(5)

O ubuntu pode ser considerado como um exercício prático de filosofias populares africanas, muito frequentemente representadas em provérbios.(2) O provérbio xhosa e zulu “Umuntu ngumuntu ngabantu” (uma pessoa só se faz pessoa através de seu relacionamento com outras pessoas), o provérbio Gikuyu “Kiunuhu gitruagw” (a avareza não alimenta) e o provérbio “É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança” são exemplos de axiomas alinhados com o espírito da ética ubuntu cujo objetivo principal é a ligação do indivíduo com o coletivo.(1,3,5) De fato, o ubuntu contempla a humanidade/ humanismo em toda a sua essência e profundidade e está no extremo oposto da filosofia do individualismo e do consumismo.(6)

Na realidade, ubuntu é a expressão compartida de vivências cotidianas, ou seja, uma forma de conhecimento aplicado que estimula a jornada rumo “ao tornar-se humano” ou “ao que nos torna humanos” ou, em seu sentido coletivo, “uma humanidade que transcende a alteridade em todos os níveis interpessoais.(5)

A noção fundamental da ética ubuntu é a “filosofia do nós”. Os princípios de partilha, preocupação e cuidado mútuos, além de solidariedade, são seus elementos constitutivos.(7,8) Claramente, está baseada no altruísmo, na fraternidade e na colaboração entre as pessoas, bem como na bondade, na lealdade e na felicidade. Ubuntu e felicidade, inclusive, são ideias profundamente conectadas. No conceito africano, a felicidade é entendida como aquilo que faz bem a toda coletividade ou ao outro.(9)

Filosoficamente, o ubuntu enumera ainda que a pessoa só é humana por meio de sua pertença a um coletivo humano, que a humanidade de uma pessoa é definida por meio de sua humanidade para com os outros, que uma pessoa existe por meio da existência dos outros em uma relação indissociável consigo mesma, que o valor da humanidade está diretamente ligado à forma como a pessoa apoia a humanidade e a dignidade dos outros e, ainda, que a humanidade de uma pessoa é definida por seu compromisso ético com os outros, sejam eles quem forem.(5)

Em linhas gerais, a moral, a interdependência entre as pessoas e a proteção da harmonia e da dignidade humana são considerados os valores nucleares do Ubuntu.(10) O fundamento do ubuntu pode ser sumarizado nas seguintes sentenças:(11)

Sou porque nós somos

Sou quem sou pelo que nós somos

Só existo porque nós existimos

Aquilo o que é comum a todas as pessoas

Minha humanidade está inextricavelmente ligada à sua humanidade

Vínculo universal que nos conecta com toda a Humanidade

A ideia central de humanidade e colaboração mútua contida no ubuntu permite a aplicação dessa filosofia em qualquer atividade, tal como a política, a educação, os esportes, o direito, a medicina e a gestão de empresas.(12) Na área de negócios, particularmente, o ubuntu está sendo traduzido para o mundo corporativo na forma de gestão participativa. Nela, todos os funcionários e até mesmo os fornecedores e demais parceiros comerciais discutem as decisões estratégicas da empresa.(13)

Notadamente, esse novo conceito filosófico apresenta um enorme potencial para a melhoria das relações no âmbito empresarial.(5) Nesse ambiente, o maior impacto tem sido observado no âmbito da cultura organizacional e da liderança coletiva, além da individual.(14)

Nas empresas, o ubuntu pode servir como um laço de união e acordo entre pessoas diferentes que trazem visões e maneiras próprias de enfrentar os dilemas do dia-a-dia das organizações, já que seus ideais propõem a integração, o diálogo e a ampla cooperação.(13,14) Uma forma hermética ou muito pessoal de enfocar os problemas pode ser um sério entrave para um trabalho em equipe eficiente. O ubuntu traz à tona, efetivamente, o conceito de oportunidade cujo cerne é a participação de todos nos processos produtivos.(15)

Para a aplicação da filosofia do ubuntu nas empresas, é condição sine qua non que seus líderes estejam alinhados com ela.(12) Neste sentido, caracteristicamente, o líder ubuntu deve estar muito mais interessado no êxito do grupo do que no sucesso individual.(5,16) Somado a isso, um traço singular desse tipo de líder é a crença na lealdade da equipe e dos grupos de trabalho subordinados. Compondo o perfil do líder ubuntu, estão ainda associados:(14)

A preocupação com o bem comum

A valorização da diversidade como riqueza

O trabalho baseado na geração de confiança

O relacionamento/comunicação pautado no reconhecimento profissional

O interesse pelas pessoas/conjunto antes dos resultados

A atitude de compromisso do líder ubuntu com o grupo gera condições propícias para a construção de vínculos de cooperação entre quem lidera e a equipe de trabalho, empoderando e dando unidade a todo o conjunto.(5,14) O ubuntu propõe nas organizações a coordenação dos esforços e pensamentos que levem a uma maior felicidade e qualidade de trabalho, permitindo que se alcance, assim, os objetivos estabelecidos de forma mais rápida e efetiva.(14)

O ubuntu é a contribuição do continente africano ao mundo das empresas, as quais, cada vez mais, têm sido solicitadas a se posicionarem sobre suas relações interpessoais. Ao contrário dos mecanismos proverbiais de gestão, o ubuntu tem, na comunidade, a base de todo o relacionamento humano. Com esse enfoque, o ubuntu empresarial propõe a criação de “uma comunidade de pessoas” entre todos os membros de uma determinada organização.(17) Pela filosofia do ubuntu, essa “comunidade de pessoas” é vista como um “único empregado” e o bem-estar coletivo é entendido como a maior preocupação de um sistema de gestão de recursos humanos.(17,18)

Como síntese, a tradicional filosofia ubuntu pode dar suporte a modernas práticas de gestão empresarial, particularmente para aquelas estruturadas em torno da ideia de que “primeiro vem o funcionário e depois vem o cliente”, tendo em vista descrever e fundamentar o empoderamento como o caminho para o fortalecimento da democracia organizacional.(19)

 

Referências 

1. Nogueira Jr R. Ubuntu como modo de existir: elementos gerais para uma ética afroperspectivista. Revista da ABPN. 3(6):147-150, nov 2011- fev 2012.

2. Asprilla MCR. El valor de la filosofía africana: ubuntu. Huellas de Identidad. 2009. Disponível em: http:/ /cristobalrivas13.blogspot.com.br/2009/08/filosofiaafricanaubuntu.Html. Acesso em: 20 mar 2016.

3. Rocha JG, Silva CC, Alburquerque GG. Ylê Ayê Orum Ubuntu: Bebendo das fontes da africanidade. Cadernos do CNLF. 27 (2): 167-177, 2013.

4. Espaço Ubuntu. A filosofia ubuntu. 2015. Disponível em: http://www.espacoubuntu.com.br/afilosofia.html. Acesso em: 20 mar 2016.

5. Swanson D. Ubuntu, uma “alternativa ecopolítica” à globalização econômica Neoliberal. Revista do Instituto Humanitas Unisinos. 353, 2010. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/ index.php?option=com_content&view=article&id=3689&secao=353. Acesso em: 20 mar 2016.

6. Casa Africa. El ubuntu hecho persona. 2015. Disponível em http://www.casafrica.es/ MCA_MAndela_8971.jsp. Acesso em: 20 mar 2016.

7. Nascimento A. Ubuntu, o comum e as ações afirmativas. Lugar Comum. 41: 29-36, 2014.

8. Ramose M. A importância vital do “Nós”. Revista do Instituto Humanitas Unisinos. 353, 2010. Disponívelem:http://www.ihuonline.unisinos.br/ index.php?option=com_content&view=article&id =3688&secao=353. Acesso em: 20 mar 2016.
RBAC. 2016;48(3):178-181 181

9. Malomalo B. “Eu só existo porque nós existimos”: a ética ubuntu. Revista do Instituto Humanitas Unisinos. 353. 2010. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_ content&view=article&id=3691&secao=353. Acesso em: 20 mar 2016.

10. Mbigi L and Maree J. Ubuntu: the spirit of african transformation management. Knowres Pub. 2005, 131p.

11. Alter Ego. Filosofia ubuntu. 2012. Disponível em: http://alteregoo.com/filosofia2/Filosofiaubuntu. Acesso em: Acesso em: 20 mar 2016.

12. Etica y otras yerbas. “Ubuntu”. 2012. Disponível em: http://eticayotrasyerbas.blogspot.com.br/2012/ 10/ubuntu.html. Acesso em: 20 mar 2016.

13. Hill L. Lições de Buda e ubuntu. Época Negócios. 2009. Disponível em: http://epocanegocios. globo.com/Revista/Common/0,,EMI22760-16363,00-LICOES+DE+BUDA+E+UBUNTU.html. Acesso em: 20 mar 2016.

14. Areválo JJ ¿Cuál es la filosofía de los “lideres ubuntu” que conquista a las nuevas generaciones? 2016. Disponível em: http://www.iprofesional.com/notas/ 232183-Cul-es-la-filosofa-de-los-lderesUbuntu-que-conquista-a-las-nuevas-generaciones. Acesso em: 21 ago 2016.

15. Díaz B. La filosofía ubuntu como marco ético de relaciones recíprocas entre personas/ equipos/ organizaciones. Cuadernos de Coaching. 9: 19-20, 2012.

16. Cronista.com. La filosofia africana del trabajo aplicada a los negocios. 2010. Disponível em: http:// www.cronista.com/impresageneral/La-filosofia-africana-del-trabajo-aplicada-a-los-negocios-201010220003.html. Acesso em: 20 mar 2016.

17. Cubeiro JC. Ubuntu. Hablemos de Talento. 2007. Disponível em: http://jccubeirojc.blogspot.com.br/ 2007/10/ubuntu.html. Acesso em: 20 mar 2016.

18. Azua S. La empresa: un compromiso colectivo y solidario. Porta Economía Solidaria. 2013. Disponível em: http://www.economiasolidaria.org/ noticias/la_empresa_un_compromiso_colectivo_y_solidario. Acesso em: 20 mar 2016.

19. Nayar V. Primeiro os Colaboradores, Depois os Clientes: Virando a Gestão de Cabeça para Baixo. 1ª. Ed. Bookman. 2011, 211p.

Paulo Murillo Neufeld, PhD

Editor-Chefe da Revista Brasileira de Análises Clínicas (RBAC)