A COVID-19 e o laboratório de hematologia: uma revisão da literatura recente

A COVID-19 and the clinical hematology laboratory: review

 

Marcos Kneip Fleury1

1Professor Associado da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro-RJ, Brasil.
Assessor Científico do Programa Nacional de Controle de Qualidade – PNCQ.

Instituição: Faculdade de Farmácia. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro-RJ, Brasil.

Recebido em 15/07/2020
Artigo aprovado em 04/08/2020
DOI: 10.21877/2448-3877.20200003

INTRODUÇÃO

A pandemia em curso, a COVID-19, teve origem em Wuhan, província de Hubei, China, em dezembro de 2019.

O agente etiológico é um novo coronavírus (SARS-CoV-2) de presumida origem zoonótica com similaridade estrutural aos vírus responsáveis pela Síndrome Respiratória Aguda Grave (Severe Acute Respiratory Syndrome – SARS) e pela Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Middle East Respiratory Syndrome – MERS).

Como a SARS e a MERS, a infecção pelo coronavírus se manifesta com mais frequência com sintomas respiratórios. Entretanto, pequena parte dos infectados evolui para síndrome do desconforto respiratório agudo/dano alveolar difuso.

Embora esteja bem documentado que a COVID-19 se manifeste principalmente como uma infecção do trato respiratório, dados emergentes indicam que deva ser considerada uma doença sistêmica que envolve múltiplos sistemas, incluindo sistema cardiovascular, respiratório, gas­trointestinal, neurológico, hematopoiético e imuno­lógico.(1)

Além de seu papel central no diagnóstico da COVID-19, o laboratório clínico fornece informações críticas aos clínicos sobre prognóstico, curso da doença e resposta à terapia.(2)

Com base em estudos realizados na China e em outros centros de pesquisa da Europa e Estados Unidos, os resultados laboratoriais podem fornecer à equipe clínica muitos marcadores prognósticos de grande utilidade. Na maioria dos estudos, as informações até agora analisadas estão baseadas em resultados de uma quantidade limitada de dados e devem ser validados com estudos adicionais. Mesmo assim, os resultados disponíveis estabelecem claramente o laboratório de hematologia clínica como um parceiro importante na triagem e no manejo dos pacientes afetados.(3)

LINFOPENIA

 

A COVID-19 é uma infecção sistêmica com impacto significativo no sistema hematopoiético e na hemos­tasia. A linfopenia pode ser considerada um achado laboratorial cardinal, com importante potencial prognóstico. (4)

Durante o curso da doença, a avaliação longitudinal da dinâmica da contagem de linfócitos e dos marcadores inflamatórios, como a lactato desidrogenase (LDH), a proteína C-reativa (PCR) e os níveis de interleucina 6  (IL-6), podem ajudar a identificar casos com pior prognóstico e indicar a pronta intervenção com o objetivo de melhorar a evolução e atingir a recuperação de uma parcela maior de pacientes.(5)

Durante o período de incubação, que geralmente varia de 1 a 14 dias, e durante a fase inicial da doença, quando apenas sintomas inespecíficos estão presentes, a contagem de leucócitos e linfócitos no sangue periférico é normal ou ligeiramente reduzida.

Após a viremia, o SARS-CoV-2 começa então a afetar principalmente os tecidos que expressam altos níveis da enzima conversora da angiotensina 2 (ECA2), incluindo os pulmões, o coração e o trato gastrointestinal.(3)

Após o início dos primeiros sintomas, há um aumento nas manifestações clínicas da doença com um desenvolvimento pronunciado de mediadores inflamatórios e cito­ci­nas, que tem sido caracterizado como uma “tempestade de citocinas”. Neste momento, uma linfopenia (absoluta e relativa) significativa se torna evidente.(6)

A linfopenia, definida como uma contagem absoluta de linfócitos (CAL) abaixo de 1,0×109/L, é um achado comum em pacientes com a COVID-19 e pode ser explicada como uma resposta imune defeituosa ao vírus.(4-10)

O monitoramento desses parâmetros hematológicos pode ajudar a identificar pacientes que podem precisar de cuidados na UTI. Uma CAL que se aproxima de uma linfo­penia grave (abaixo de 0,6×109/L) pode ser considerada um dos indicadores de admissão precoce na UTI.(10)

Alguns estudos mostraram que a linfopenia foi mais intensa naqueles pacientes que necessitaram de tratamento intensivo do que no grupo em que o curso da doença foi mais brando.

Em uma recente metanálise, foi observado que 35% a 75% dos pacientes desenvolveram linfopenia e que esta foi uma característica frequente identificada entre os pacientes que foram a óbito.(11)

Em crianças, a linfopenia é muito menos comum, como demonstrado em um estudo chinês, no qual a linfo­penia foi identificada em apenas 3% dos pacientes pediá­tricos. Esta é uma característica muito particular da COVID-19, pois contrasta com outras infecções virais semelhantes, como a SARS, na qual a linfopenia foi um achado muito mais comum em crianças.(12)

Pacientes com evolução mais grave apresentam anormalidades laboratoriais mais importantes (incluindo linfo­penia e leucopenia) do que aqueles com doença mais branda. Embora sejam necessárias mais pesquisas sobre a etiologia subjacente, vários fatores podem contribuir para a linfopenia associada ao COVID-19.(4,13,14)

Alguns estudos sugerem que a diminuição substancial no número total de linfócitos indica que o coronavírus poderia afetar as células imunes e inibir, de certa forma, a função imune celular.(13)

Isto pode ser explicado pela expressão do receptor ECA2 pelos linfócitos. Desta forma, haveria a infecção direta do SARS-CoV-2 a estas células, levando-as a lise.(15)

Além disso, a infecção pelo coronavírus causa resposta sustentada de citocinas, a tempestade de citocinas, levando a uma alta frequência de doenças imunológicas e mortalidade.(16) Essa resposta de citocinas é caracterizada por níveis marcadamente aumentados de interleucinas, principalmente IL-6, IL-2, IL-7, fator estimulador de colônias de granulócitos (G-CSF), Interferon-g e fator de necrose tumoral (TNF), todos capazes de promover apoptose linfo­citária.(4)

Adicionalmente, a ativação substancial de citocinas pode estar associada à atrofia dos órgãos linfoides, incluindo o baço, prejudicando ainda mais a renovação dos linfócitos. A acidose láctica coexistente, que pode ser mais proeminente entre pacientes com câncer, aumenta o risco de complicações na COVID-19 e também pode inibir a proliferação de linfócitos.(4)

Os linfócitos e suas subpopulações desempenham um papel importante na manutenção da função do sistema imunológico. Tal como acontece com doenças imunes e outras doenças infecciosas, as infecções por vírus também podem levar à desregulação nos níveis destas subpo­pulações.(17)

Quando comparados a indivíduos sadios, os pacientes com COVID-19 apresentam significativa diminuição de linfócitos totais e as subpopulações de células T CD4 e CD8, células B e NK. Os pacientes com casos mais graves apresentam linfócitos totais significativamente mais baixos assim como células T CD4, CD8 e células B. Em pacientes responsivos, os linfócitos totais, células T CD8 e células B aumentam, acompanhando a melhora do quadro clínico.(9)

A presença de linfócitos reativos pode ocorrer, de modo geral, apresentando heterogeneidade morfológica. Entretanto, alguns relatos destacam a presença de alterações do tipo linfoplasmocitoide e também de grandes linfócitos granulares (GLG).(18)

 

NEUTRÓFILOS

 

Os dados sobre neutrofilia ainda não foram profundamente abordados na literatura. Os estudos disponíveis sugerem que a neutrofilia é uma expressão da tempestade de citocinas e do estado hiperinflamatório, que desempenham um papel importante na fisiopatologia da COVID-19 e de infecções relacionadas, como a SARS.(9,15)

Existem relatos mostrando que a neutrofilia é comum em pacientes tratados na UTI durante a hospitalização e que, provavelmente, estaria relacionada à infecção bacte­riana associada.(8,10)

Notavelmente, os pacientes de UTI tendem a desenvolver neutrofilia durante a hospitalização, mostrando níveis médios de neutrófilos superiores aos observados naqueles que não necessitam de cuidados intensivos, sendo a neutrofilia associada ao aumento do risco de morte.(10,18)

De forma geral, os neutrófilos mostram núcleo hipos­segmentado, em alguns casos com cromatina pré-apop­tótica e citoplasma hipergranular, por vezes com áreas basofílicas hipogranulares. Esse dismorfismo parece estar relacionado a granulopoiese acelerada e desordenada, associada à hiperinflamação. Essas anomalias morfo­lógicas geralmente precedem o aumento de linfócitos reativos.(2,19)

Um número maior de neutrófilos e um número menor de linfócitos, ou seja, o aumento da razão neutrófilos/linfócitos (RNL) foi observado no grupo de pacientes com evolução mais grave em comparação ao grupo com clínica mais branda.(20)

A RNL tem sido considerada como um marcador confiável em casos de inflamação e infecção sistêmica e é estudado como um preditor de infecção bacteriana, inclusive das síndromes respiratórias e de pneumonia.(21)

De acordo com os achados de Wang et al., vários pacientes com COVID-19 apresentam aumento na contagem de neutrófilos e queda na contagem de linfócitos durante a fase grave, indicando distúrbios importantes e condição crítica nos casos mais graves da infecção.(22)

 

TROMBOCITOPENIA

 

As plaquetas participam ativamente da resposta imune além de desempenharem papel importante na hemos­tasia, coagulação, manutenção da integridade vascular, angiogênese, imunidade inata, resposta inflamatória, biologia tumoral, etc. Mudanças em seu número e atividade estão intimamente relacionadas a uma grande variedade de doenças.

As infecções virais são frequentemente associadas a trombocitopenia, e muitos vírus como o HIV, influenza, dengue e o vírus da hepatite C foram encontrados no interior das plaquetas.

Os dados clínicos obtidos do surto de pandemia de H1N1 de 2009 indicam que muitos dos pacientes que necessitaram de internação em unidades de terapia intensiva apresentaram trombocitopenia. Essa observação foi ainda mais pronunciada em pacientes que sucumbiram à infecção, sugerindo que, durante infecção viral grave, a diminuição do número de plaquetas estaria relacionada a uma pior evolução clínica.(23)

As plaquetas são produzidas por megacariócitos maduros na medula óssea, e muitos estudos têm mostrado que uma variedade de citocinas, incluindo a trombopoietina (TPO), IL-3, IL-6, IL-9, IL-11 e fator estimulador de células tronco (SCF), podem estimular a produção de megacarió­citos. Os valores absolutos de plaquetas e linfócitos podem ser usados como indicadores sensíveis no monito­ramento de infecções e inflamações.(24)

No momento da admissão, a maioria dos pacientes com COVID-19 apresenta linfocitopenia, trombocitopenia, e a leucopenia foi observada em 33,7% dos casos. Essas anormalidades hematológicas foram mais marcantes entre os pacientes mais graves.(5)

Um dos trabalhos chineses mostrou que o nível de linfócitos no momento da admissão hospitalar está diretamente relacionado ao prognóstico. Os pacientes mais velhos, com menor número de linfócitos e plaquetas, apresentaram quadros mais graves e permaneceram mais tempo no hospital.

Leucopenia, neutropenia e um aumento na proporção de linfócitos não são significativamente alterados em pacientes com infecções virais mais comuns, mas estes parâ­metros se mostram muito alterados na rotina hematológica na COVID-19.(24)

Vários estudos mostram que, nas infecções graves, algumas características imunológicas do paciente ou outras doenças são responsáveis pela trombocitopenia secundária. A coagulação intravascular disseminada (CID) e a púrpura trombótica trombocitopênica (PTT), sempre caracterizadas pelo rápido declínio plaquetário, são exemplos destas condições.(19)

A observação de alguns pacientes demonstrou inicialmente um aumento de plaquetas seguido de sua brusca diminuição, principalmente nos casos mais graves. Além disso, os pacientes com aumento significativo de plaquetas e com idade mais avançada tiveram internações hospitalares mais longas. Portanto, especulou-se que as alterações nas plaquetas no curso do tratamento pudessem estar correla­cionadas com a progressão e prognóstico do COVID-19. Qu et al. mostraram que entre trinta pacientes hospitalizados com COVID-19 aqueles que apresentaram um pico na contagem de plaquetas durante o curso da doença tiveram piores resultados.(24)

As possíveis causas de alterações plaquetárias em pacientes com COVID-19 foram analisadas da seguinte forma:

(a) o Coronavírus seria capaz de invadir diretamente células hematopoiéticas ou células do estroma da medula óssea, levando à inibição hematopoiética.

(b) Estudos anteriores mostram que o pulmão pode ser um dos órgãos onde os megacariócitos maduros liberam plaquetas e que a trombocitopenia em pacientes com infecção por SARS-Cov-2 pode estar associada diretamente ao dano pulmonar.(24,25)

Extensas lesões alveolares estão presentes em pacientes com COVID-19 e SARS, sendo os danos aos tecidos pulmonares induzidos pela infecção viral e também pelo alto fluxo de oxigênio imposto pelos respiradores artificiais. A lesão do tecido pulmonar e das células endoteliais pulmonares pode levar à ativação, agregação e retenção de plaquetas no pulmão e à formação de trombo no local lesionado. Esta situação pode levar à depleção de pla­quetas e megacariócitos, resultando em diminuição da produção de plaquetas e aumento do consumo.(24-26)

Vários estudos sugerem que a trombocitopenia está significativamente associada à gravidade da doença. Embora exista uma grande heterogeneidade entre os valores obtidos nesses estudos, todos apontam que uma queda considerável no número de plaquetas foi observada especialmente nos não sobreviventes.(25)

A trombocitopenia é característica em pacientes gravemente enfermos e geralmente sugere uma grave descom­pensação fisiológica, bem como a possibilidade de desenvolvimento de coagulopatia intravascular, evoluindo frequentemente para a coagulação intravascular disseminada (CID).(25)

 

COAGULAÇÃO

 

Os distúrbios da coagulação são relativamente frequentes entre os pacientes com COVID-19, especialmente entre aqueles com doença grave. Em um estudo retrospectivo multicêntrico, realizado nos primeiros dois meses da epidemia, 46,4% dos pacientes com infecção confirmada apresentaram aumento dos valores de dímero D (³0,5 mg/L), sendo os resultados mais altos observados nos casos mais graves.(4)

Em um outro estudo retrospectivo na China foi demonstrado que os níveis de dímero D e de tempo de pro­trombina (TP) apresentavam valores mais elevados no momento da admissão hospitalar naqueles pacientes que precisaram de maiores cuidados e de tratamento intensivo. A dinâmica dos resultados do dímero D durante a evolução da infecção pode refletir a gravidade do quadro, e o aumento de seus níveis está associado a resultados adversos em pacientes com pneumonia.(6,9,27)

De modo geral, os pacientes com infecção pelo Coro­navírus apresentam os parâmetros de coagulação alterados sugerindo um quadro de sepse ou CID. O TP e o dímero D têm sido considerados como indicadores úteis do prognóstico e da gravidade da COVID-19.(28)

Em um estudo com 183 pacientes, o TP, TTPA, fibrino­gênio, antitrombina III (AT III), produtos de degradação da fibrina (PDF) e dímero D foram medidos consecutivamente durante duas semanas de internação. A mortalidade registrada deste grupo foi de 11,5% e o grupo dos não sobreviventes demonstrou, no momento da admissão, níveis significativamente mais altos de dímero D e de PDF além de TP e TTPA mais longos quando comparados ao grupo de sobreviventes. Ainda em relação aos não sobreviventes, os níveis de fibrinogênio e AT III apresentaram-se significativamente reduzidos enquanto que os níveis de dímero D e PDF foram marcadamente elevados. Estes achados sugerem a ativação da coagulação, a geração desregulada de trombina e a fibrinólise.(1,29)

Entre os pacientes com pneumonia por coronavírus, o aumento do TP foi associado ao aumento do risco de Síndrome do Desconforto Respiratório Agudo (SDRA), enquanto que os níveis aumentados de dímero D foram significativamente associados ao aumento do risco de SDRA e morte.(18)

De acordo com os critérios de diagnóstico da Sociedade Internacional de Trombose e Hemostasia (ISTH) para o diagnóstico da CID, 71,4% dos pacientes que não sobreviveram à pneumonia associada a COVID-19 tiveram diagnóstico confirmado. Entre os sobreviventes, apenas um paciente teve o diagnóstico de CID confirmado. Esses achados demonstram a enorme importância do moni­toramento laboratorial regular nestes pacientes.(29,30)

O tempo médio para a manifestação da CID foi de quatro dias (variação: 1-12 dias) a partir da internação. Em um estudo prospectivo, avaliando-se o perfil de coagulação de pacientes com COVID-19, os níveis de PDF, dímero D e fibrinogênio foram marcadamente mais altos que os observados entre pacientes saudáveis. Além disso, pacientes mais graves apresentaram valores mais altos de dímero D e PDF do que aqueles com manifestações mais leves.(27) Este quadro sugere que os parâ­metros de coagulação durante o curso da pneumonia por Coro­navírus estão significativamente associados ao prognóstico.(29)

A CID foi identificada na maioria das mortes. Pacientes que apresentam infecção por vírus podem evoluir para sepse associada à disfunção orgânica. A sepse está bem estabelecida como uma das causas mais comuns de CID, que se inicia quando monócitos e células endoteliais são ativados ao ponto de liberação de citocinas, com expressão do fator tecidual e secreção do fator von Willebrand. A circulação de trombina livre, não controlada pelos anticoa­gulantes naturais, pode ativar plaquetas e estimular a fibri­nólise.(31)

O risco de tromboembolismo venoso (TEV) em pacientes hospitalizados com COVID-19 é uma questão emergente. A taxa de TEV sintomático em pacientes hospitalizados na fase aguda da doença aumenta em até 10%. A imobilização prolongada, a desidratação, o estado inflamatório agudo, a presença de outros fatores de risco cardiovascular ou doença cardiovascular, história prévia de TEV e trombofilia genética clássica, como a mutação hete­rozigótica do fator V Leiden, são comorbidades comuns em pacientes COVID-19 hospitalizados, que potencialmente podem aumentar o risco de TEV.(5)

A possibilidade de ativação e ou dano de células endoteliais devido à ligação do vírus ao receptor ACE2 pode aumentar ainda mais o risco de TEV. A liberação de uma grande quantidade de mediadores inflamatórios e o uso de hormônios e imunoglobulinas em pacientes graves podem levar a um aumento da viscosidade do sangue. Além disso, ventilação mecânica, cateterismo venoso central ou cirurgia podem induzir ao dano endo­telial vascular. A combinação de todos os fatores acima pode levar à ocorrência de trombose venosa profunda (TVP) ou até à possibilidade de embolia pulmonar (EP) letal devido à migração de trombo.

Assim, diante desse risco de TEV, a aplicação da tromboprofilaxia farmaco­lógica é obrigatória em pacientes hospitalizados com COVID-19.(5)

As heparinas de baixo peso molecular (HBPM) ou a heparina não fracionada (HNF) devem ser preferidas aos anticoagulantes orais diretos devido a possíveis interações medicamentosas com os tratamentos antiviral e antibacte­riano concomitantes.(30)

Além disso, também é importante prestar atenção ao risco de TEV em pacientes assintomáticos ou ambula­toriais com infecção leve por COVID-19. O diagnóstico precoce de EP em pacientes COVID-19 com manifestações clínicas de deterioração súbita da oxige­nação, dificuldade respiratória ou hipotensão é de grande importância para a melhoria dos resultados clínicos.(5,27,29)

Existem quatro aspectos importantes no tratamento de pacientes com COVID:

1)  Diagnóstico e acompanhamento precoces da CID, aplicando-se o escore ISTH (contagem de plaquetas, TP, fibrinogênio, dímero D, antitrombina III e monitoramento da atividade da proteína C), que pode determinar o prognóstico e orientar o suporte intensivo mais adequado;

2)  Identificação de pacientes de alto risco, hospitalizados ou no ambulatório;

3)  A otimização do regime de tromboprofilaxia sendo a HBPM o medicamento de primeira linha;

4)  As propriedades anti-inflamatórias da HBPM podem apresentar um benefício adicional em pacientes com COVID 19 além da possibilidade da integração de outros tratamentos antitrombóticos, como antitrombina e trombo­modulina recombinantes.(5)

Em conclusão, o processo de coagulação sanguínea em pacientes com COVID-19 parece estar claramente alterado. Mais especificamente, verificou-se que os valores do dímero D, produtos de degradação da fibrina e fibrino­gênio aumentaram significativamente enquanto que a AT III foi significativamente menor. Ainda mais importante, verificou-se que o dímero D e o PDF são especialmente predi­tivos da progressão da doença; portanto, seu moni­tora­mento de rotina se apresenta como um marcador confiável da evolução do quadro.(27)

 

MARCADORES DE INFLAMAÇÃO SISTÊMICA

 

Nos últimos anos, alguns biomarcadores de inflamação sistêmica, incluindo a sepse, tornaram-se disponíveis nos principais analisadores de sangue como parte do hemograma completo ou como parâmetros medidos no modo de pesquisa. Entre estes novos parâmetros estão a expressão de CD64 de neutrófilos, volume celular médio de neutrófilos e monócitos, fração imatura de granu­lócitos, índice delta de neutrófilos e a amplitude da variação de tamanho dos monócitos (MDW). É concebível que muitos desses marcadores possam ser úteis na identificação de pacientes com risco de sepse bacteriana secundária, embora ainda não existam estudos que comprovem sua eficácia nesse momento. Uma exceção é o MDW (Beckman Coulter, Brea, CA, EUA), que foi relatado como aumentado em quase todos os pacientes infec­tados com COVID-19, principalmente naqueles com os piores sintomas clínicos, de acordo com dados recentemente relatados em uma revisão.(7) Entretanto, estes dados do MDW devem ser interpretados com cautela, uma vez que a presença de linfócitos reativos em pacientes positivos para COVID-19 pode resultar em um MDW falsamente elevado.

Outra aplicação potencial dos dados derivados do hemograma seria o uso de fórmulas como a relação de neutrófilos/linfócitos (RNL), relação de plaquetas/linfó­citos (RPL) e relação de monócitos/linfócitos (RML) atuando como adjuvantes para avaliar a extensão da inflamação. Embora ainda não existam estudos mais apro­fundados, envolvendo um número maior de pacientes, Qin et al. relataram um aumento na RNL em pacientes com doença grave em comparação com aqueles com curso mais brando.(2,20)

A relação plaquetas/linfócitos no momento do pico plaquetário emergiu como um fator prognóstico independente associado a hospitalização prolongada em um dos estudos. Foi sugerido que uma alta relação plaquetas/linfócitos poderia indicar uma tempestade de citocinas mais pronunciada devido à maior ativação plaquetária.

Considerada como um novo índice de inflamação, a RPL reflete principalmente o nível de inflamação sistêmica. Estudos anteriores confirmaram que a RPL está intimamente relacionada a tumores, diabetes, doença coronariana e doenças do tecido conjuntivo. Além disso, o aumento da PLR está relacionado ao tamanho do tumor, infiltração de linfonodos, metástase e ao prognóstico, podendo ser usada como potencial indicador inflamatório para o diagnóstico de pneumonia.(24)

As plaquetas circulam em sua forma inativa, podendo ser ativadas rapidamente no local da lesão vascular ou em resposta às citocinas pró-inflamatórias ou fatores infecciosos. A ativação das plaquetas por esse mecanismo, mesmo sem danos vasculares, indica novas funções pla­quetárias, como participação nos processos de inflamação e regulação imune.

Os linfócitos são as principais células imunoativas do corpo humano, e sua contagem representa um mar­cador precoce de estresse fisiológico e inflamação sistê­mica. A liberação de fator 4 plaquetário pode promover a formação de linfócitos, e a presença de plaquetas ativa­das aumenta a adesão de linfócitos ao endotélio, promo­vendo, assim, sua migração para locais de inflamação. A vantagem da utilização da RPL é que este mar­cador se relaciona à agregação plaquetária e à reação inflamatória e talvez seja mais valiosa na previsão de várias inflamações do que a contagem de plaquetas ou linfó­citos isoladamente.(24)

De acordo com análises anteriores, o RPL foi proposto como um indicador que é capaz de refletir a gravidade da inflamação durante o tratamento. Ao se compararem as alterações da RPL durante o tratamento, verificou-se que quanto maior o Δ RPL maior o tempo de internação hospitalar.

Portanto, especulou-se que as alterações na proporção de plaquetas/linfócitos no sangue periférico durante o tratamento pudessem refletir a progressão da doença e o prognóstico dos pacientes com COVID-19. Quanto maior a ΔPLR mais grave a tempestade de cito­cinas, e quanto maior a permanência no hospital pior o prognóstico.(24,32)

A atividade pró-inflamatória das plaquetas é mediada também por sua interação com os demais leucócitos em circulação, seguida pela liberação de citocinas e quimiocinas durante o processo inflamatório.(32,33)

 

CONCLUSÕES

 

Em resumo, a COVID-19 apresenta alterações importantes do sistema hematopoiético estando frequentemente associada a um estado de hipercoagulabilidade. A avaliação cuidadosa dos índices laboratoriais no início da doença e durante a evolução podem ajudar o corpo clínico a formular uma abordagem de tratamento adaptada à situação além de permitir atenção especial àqueles pacientes que apresentam maior necessidade.

Medidas preventivas para tromboprofilaxia e a identificação precoce de complicações potencialmente letais, incluindo CID, resultam em melhores resultados e provavelmente reduzirão a taxa de mortalidade geral entre os pacientes infectados sem comorbidades significativas.

A vigilância contínua e o monitoramento laboratorial dos pacientes desde o início das manifestações clínicas são lições importantes que estamos aprendendo ao tratar de uma doença nova, sistêmica e com aspectos fisio­patológicos muito característicos.(6,7,18,26,29)

 

Abstract

COVID-19 manifests itself mainly as an infection of the respiratory tract. However, a huge number of studies show characteristics of a systemic disease with repercussions on the cardiovascular, respiratory, gastrointestinal, neurological, hematopoietic and immunological systems. Studies carried out in various research centers in China, Europe and the United States indicate that laboratory results can provide the clinical team with many useful prognostic markers. The impact on the hematopoietic system and hemostasis is evidenced by important changes in the amount of lymphocytes, granulocytes and platelets, in addition to changes in the coagulation process. These parameters can be monitored and have a prognostic effect on the evolution of the disease and can help to identify patients who need intensive care. In summary, COVID-19 presents important changes in the hematopoietic system and is frequently associated with a state of hypercoagulability. Careful assessment of laboratory indexes at the onset of the disease and during evolution can help the clinical staff to formulate a treatment approach adapted to the situation, in addition to allowing special attention to those most severe patients.

 

Keywords

Coronavirus infections; hematology; blood cell count; disseminated intravascular coagulation; severe acute respiratory syndrome

 

 

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Correspondência

Marcos Kneip Fleury

Faculdade de Farmácia

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