Posicionamento da Sociedade Brasileira de Análises Clínicas sobre o reporte da estrutura denominada Urbanorum spp. em amostras de fezes – 2021

Position of the Brazilian Society of Clinical Analyses on the report of the structure called Urbanorum spp. in stool samples – 2021

 

José Antonio Tesser Poloni1
Alessandro Conrado de Oliveira Silveira2
Flávia Martinello3
Mauren Isfer Anghebem4
Paulo Murillo Neufeld5
Tiana Tasca6
Lenilza Mattos Lima7

 

1  Farmacêutico-Bioquímico, Doutor em Ciências da Saúde, Professor da Escola de Saúde da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

2  Farmacêutico-Bioquímico, Doutor em Ciências da Saúde, Professor de Microbiologia da Fundação Universidade Regional de Blumenau/FURB.

3  Farmacêutica-Bioquímica, Pós-doutora em Análises Clínicas, Professora do Departamento de Análises Clínicas da Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC.

4  Farmacêutica-Bioquímica, Doutora em Ciências Farmacêuticas/Análises Clínicas, Professora de Parasitologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica do Paraná/PUC-PR, Professora de Análises Clínicas da Universidade Federal do Paraná/UFPR.

5  Doutor em Ciências, Professor de Micologia Clínica e Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ.

6  Farmacêutica-Bioquímica, Doutora em Ciências Biológicas/Bioquímica, Professora de Parasitologia Clínica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS.

7  Farmacêutica-Bioquímica, Mestre em Farmácia (área de concentração Análises Clínicas), Professora de Parasitologia Clínica da Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC.

 

Instituição: Sociedade Brasileira de Análises Clínicas (SBAC).

 

DOI: 10.21877/2448-3877.202100021

 

 

INTRODUÇÃO

 

Em 1994, Francisco Tirado Santamaría, da Universidad Industrial de Santander na Colombia, descreveu uma estrutura observada em amostras de fezes humanas como sendo um microrganismo. Classificou a estrutura como um protozoário similar as amebas, com características particulares, e a nomeou Urbanorum spp.(1)

Anos após sua publicação, alguns relatos semelhantes foram divulgados, associando a presença da estrutura a quadros clínicos intestinais.(2-5)

 

O QUE É A ESTRUTURA DENOMINADA URBANORUM SPP.

 

Para melhor conhecermos este elemento realizamos alguns testes com amostras fecais contendo a referida estrutura e verificamos que:

a) A estrutura é observada tanto encapsulada (membrana intacta) quanto “emitindo projeções” após o rompimento da membrana ou cápsula, especialmente quando a amostra é pressionada entre a lâmina e a lamínula;

b) A estrutura pode ser observada ao exame microscópico direto a fresco, apresentando coloração marrom discreta, mesmo sem tratamento com corantes (Figura 1).

c) Quando corada pelo Lugol, a estrutura se apresenta em tons amarelados/alaranjados (Figura 2).

d) A estrutura cora em vermelho com Sudan III (Figura 3).

e) Sob microscopia com filtro de luz polarizada a estrutura forma cruzes de Malta (Figuras 4 e 5).

 

4

Figura 1. Estrutura com membrana rompida e conteúdo extravasando de seu interior. Exame direto a fresco de amostra de fezes. Microscopia de campo claro. Aumento original 400x.

Fonte: Cortesia do Prof. José Antonio Tesser Poloni.

5

Figura 2. Estrutura com membrana rompida e conteúdo extravasando de seu interior. Exame direto de amostra de fezes. Coloração pelo Lugol. Microscopia de campo claro. Aumento original 400x.

Fonte: Cortesia do Prof. José Antonio Tesser Poloni.

6.1 6.2

Figura 3. Estrutura com membrana rompida e conteúdo extravasando de seu interior. Exame direto de amostra de fezes. Coloração pelo Sudan III. Microscopia de campo claro. Aumento de 400x com zoom (esquerda) e aumento original de 400x (direita).

Fonte: Cortesia da Profa. Lenilza Mattos Lima.

7

Figura 4. Estrutura com membrana rompida e conteúdo extravasando de seu interior. Exame direto de amostra de fezes. Coloração: Lugol. Microscopia de campo claro (esquerda) e microscopia com filtro de luz polarizada (direita). Aumento original 400x.

Fonte: Cortesia do Prof. José Antonio Tesser Poloni.

8

Figura 5. Estrutura com conteúdo “livre” (acima) e intacta (abaixo). Exame direto de amostra de fezes. Coloração: Lugol. Microscopia de campo claro (esquerda) e microscopia de luz polarizada (direita). Aumento original 400x.

Fonte: Cortesia do Prof. José Antonio Tesser Poloni.

 

 

EVIDÊNCIAS CIENTÍFICAS

 

A literatura disponível sobre o tema é escassa. Em uma das principais bases de dados na área da saúde, PubMed, a pesquisa pelo descritor Urbanorum spp. resulta em apenas dois artigos, sendo um do Brasil.(2,3)

A Divisão de Doenças Parasitárias e Malária do Centro para Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (Centers for Disease Control and Prevention – CDC) mantém uma plataforma digital contendo informações sobre praticamente todos os parasitos que podem causar infecções nos seres humanos (https://www.cdc.gov/dpdx/index.html). Neste endereço eletrônico não há qualquer informação sobre Urbanorum spp.

Até o presente momento não há relatos publicitados que comprovem que a estrutura se trata de um microrganismo, uma vez que:

– Não há relato de cultivo in vitro, o qual poderia evidenciar divisão celular;

– Não há estudo demonstrando a ultraestrutura celular e/ou organelas citoplasmáticas por microscopia eletrônica;

– Não há dados sobre análise molecular da estrutura, evidenciando material genético;

– Não há relatos de estudos filogenéticos e/ou taxonômicos da estrutura.(6)

 

A análise realizada por esta Comissão sugere que a estrutura é, muito provavelmente, um artefato de conteúdo lipídico (gordura). Tal conclusão baseia-se nas seguintes evidências:

 

  1. Coloração vermelha após tratamento com Sudan III
    O corante Sudan III ou Sudan Red G é um corante azóico lisocrômico, ou seja, com afinidade por lipídios. Com base nesta característica lipofílica, é utilizado para demonstrar presença de gorduras (lipídeos e lipoproteínas) em amostras biológicas. As gotas de gorduras, quando presentes, se apresentam coradas de vermelho em microscopia de campo claro.(7,8)
  2. Presença de cruz de Malta em microscopia de luz polarizada
    Em análises clínicas, a microscopia de luz polarizada é utilizada para auxiliar na identificação de substâncias birrefringentes, como cristais e gotículas de gordura. Lipídios formados por ésteres de colesterol formam uma estrutura em “cruz de Malta” com lados simétricos quando vistos sob luz polarizada.(9)
      Estruturas anisotrópicas, como as gorduras, possuem birrefringência e são observadas em microscopia com luz polarizada com coloração amarelada brilhante. Estruturas isotrópicas são substâncias que possuem as mesmas propriedades físicas independentemente da direção considerada (p.ex. células) e não apresentam birrefringência, portanto, não são visualizadas em microscopia com luz polarizada.(10)
  3. Ausência de organelas citoplasmáticas
      Nas estruturas observadas não foram evidenciados núcleos e/ou qualquer organelas especializadas, características de células eucariotas unicelulares.

 

Relatos de caso sobre o Urbanorum spp. destacaram que os pacientes cujas amostras apresentavam estas estruturas também apresentavam sintomatologia intestinal, com resolução do quadro após tratamento farmacológico com antiparasitários.(3,4,11,12)

Em relação a este argumento, ressaltamos que sintomas intestinais podem estar relacionados a uma série de outras condições patológicas, além das parasitoses, como: síndrome do intestino irritável, doença inflamatória intestinal, intolerância alimentar, disbiose, deficiência pancreática exócrina, diarreia funcional, câncer de cólon, colite, doença da tireoide, doença celíaca, fibrose cística, entre outros. Muitas destas patologias cursam com a presença de gordura nas fezes. Ainda, sintomas intestinais decorrentes de intoxicação ou infecção alimentar, causa inflamatória, emocional ou medicamentosa, podem ser transitórios, o que justificaria sua resolução após tratamento com antiparasitário.(13–17)

RECOMENDAÇÕES DA SBAC
Com base nas informações disponíveis até o momento, não há evidências científicas robustas que respaldem a identificação desta estrutura como sendo um microrganismo associado a doença infecciosa parasitária.

A SBAC recomenda, portanto, que esta estrutura não seja reportada nos laudos de exames parasitológicos de fezes para evitar tratamentos desnecessários e/ou inadequados para os pacientes.

 

OBSERVAÇÃO FINAL

 

Se, em algum momento, algum profissional conseguir demonstrar que se trata de um microrganismo e que seja patogênico aos seres humanos, este documento será revisado.

 

 

REFERÊNCIAS

  1. Santamaría FT. Urbanorum spp. Buenas Tareas [Internet]. 2015; Available from: http://www.buenastareas.com/ensayos/Urbanorum-Spp/70918639.html
  2. Villafuerte RIM, Collado LAZ, Velarde CN. Urbanorum spp. in Peru. Rev Peru Med Exp Salud Publica. 2016;33(3):593–5.
  3. de Aguiar RPS, Alves LL. Urbanorum spp: First report in Brazil. Am J Case Rep. 2018;19:486–90.
  4. Kruger EMM. Urbanorum spp.: novo parasita no Brasil. Rev Bras Med Família e Comunidade. 2020;15(42):2157.
  5. Arriaga-Deza EV, Iglesias-Osores SA. Urbanorum spp. en Hospital Regional Lambayeque. Rev Exp en Med del Hosp Reg Lambayeque. 2016;2:156-57.
  6. Silva-Díaz H. Urbanorum spp.”: Controversia De Su Condición Biológica Y Aceptación Como Nuevo Parásito Intestinal. RevExpMed. 2017;3:3–4.
  7. Mohamed SS, Mahmoud SM, Elgawish RA, Elhady KA. Sudan III Azo Dye : Oxidative Stress with Possible Geno and Hepatotoxic Effects in Male Rats. Int J Sci Res. 2016;5(10):1700–4.
  8. Drummey GD, Benson JA, Jones CM. Microscopical Examination of the Stool for Steatorrhea. N Engl J Med. 1961;264(2):85–7.
  9. Andriolo A, Bichara CDA, Garlipp CR, Poloni JAT, Fonseca KMN de L, Xavier LGM, et al. Microscopia. In: Recomendações da Sociedade Brasileira de Patologia Clínicas/medicina laboratorial (SBPC/Ml): Realização de exames em urina. 2017. p. 306.
  10. Narine SS, Marangoni AG. Relating structure of fat crystal networks to mechanical properties: A review. Food Res Int. 1999;32(4):227–48.
  11. Lopez JCB, Nunes LDS. Urbanorum spp: Segundo relato de caso no Brasil. An do 10o Salão Int Ensino, Pesqui e Extensão. 2019;10(1).
  12. Casarin JN, Duarte SM da S, Sampaio JS. First reports from Urbanorum spp, meeting in sus patient floes in a Private Imperatriz laboratory during 2018. Int J Dev Res. 2019;9(10):30676–8.
  13. Bray GA, Ryan DH. Drug Treatment of the Overweight Patient. Gastroenterology. 2007;132(6):2239–52.
  14. Kurin M, Cooper G. Irritable bowel syndrome with diarrhea: Treatment is a work in progress. Cleve Clin J Med. 2020;87(8):501–11.
  15. Alkaade S, Vareedayah AA. A primer on exocrine pancreatic insufficiency, fat malabsorption, and fatty acid abnormalities. Am J Manag Care. 2017;23(12 Suppl):S203-S209.
  16. Nikaki K, Gupte GL. Assessment of intestinal malabsorption. Best Pract Res Clin Gastroenterol. 2016;30(2):225-35.
  17. Pushpanathan P, Mathew G, Selvarajan S, Seshadri K, Srikanth P. Gut microbiota and its mysteries. Indian J Med Microbiol. 2019;37:268–77.